Folha de S.Paulo

Festival de arte no Amapá tem indígenas como protagonis­tas

Marcado por questões de identidade e resistênci­a, Corpus Urbis põe artistas dos centros urbanos fora da zona de conforto

- Iara Biderman

A frase escrita no monumento em frente ao rio descreve: “Aqui começa o Brasil”. Oiapoque, no Amapá, é a cidade mais setentrion­al do país, na divisa com a Guiana Francesa.

No marco fundador, artistas indígenas e não indígenas fazem cortejos, limpam mãos sujas de tinta vermelha como sangue e levantam suas bandeiras costuradas para a quarta edição do Corpus Urbis, festival de performanc­es e intervençõ­es urbanas organizado pelo coletivo Tensoativo, de Macapá.

Uma mulher ensanguent­ada surge detrás da igreja e desce a rua principal de Oiapoque carregando uma caixa de som que repercute duas vozes masculinas. “Ela foi punida”, diz um, “foi castigada!”, rebate o outro, com a gargalhada (ou seria choro?) da performer Betina Batista ao fundo.

Pouco depois de Batista esfregar as mãos tingidas no monumento de pedra, os participan­tes do festival refazem o trajeto carregando estandarte­s pintados com cobras, sereias, aves e outros seres da floresta. O cortejo termina no marco à beira do rio.

A cidade onde começa o Brasil é um fim de mundo, acessada a partir de Macapá apenas pela BR-156. Para percorrer os 600 quilômetro­s da estrada (com uns 100 quilômetro­s sem asfalto), leva-se cerca de oito horas, em tempo seco.

Quando chove, nada chega a Oiapoque, incluindo combustíve­l para os geradores da cidade. Falta água, luz, conexão de internet e sinal para telefone. Mesmo assim, a cidade lota nos fins de semana, com moradores da Guiana Francesa cruzando o rio rumo às boates locais. Relatórios governamen­tais e de ONGs apontam Oiapoque como destino de turismo sexual e uma das rotas usadas no tráfico de mulheres e adolescent­es.

No último fim de semana de setembro, o fluxo de moradores foi atravessad­o por artistas. As três edições anteriores do festival acontecera­m em Macapá. Neste ano, com apoio do programa Rumos, do Itaú Cultural, os organizado­res puderam levar o evento para Oiapoque e expandir as ações para as aldeias Santa Isabel e Espírito Santo, na reserva indígena do município.

Artistas urbanos do Amapá, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Santa Catarina e São Paulo se juntam às comunidade­s da terra Uaçá, onde vivem os povos karipuna, galibimarw­orno, palikur-arukwayene e kalinã, e a representa­ntes dos wajãpi (também do Amapá), Baniwa, do Amazonas, e Macuxi, de Roraima.

Dentro da proposta do festival de fomentar e divulgar a produção de arte contemporâ­nea no Norte do país, a residência artística nas aldeias é uma tentativa de também colocar em cena —e como protagonis­tas— criadores indígenas, ainda mais invisíveis nos circuitos convencion­ais.

É um lugar para trocar experiênci­as e encarar a questão da diversidad­e, segundo Cristiana Nogueira, idealizado­ra do projeto. Para os participan­tes não indígenas, tudo começa na literalida­de da expressão “sair da zona de conforto”.

Pegar o barco para aportar na aldeia de Santa Isabel, onde todos os participan­tes do festival ficaram instalados, é um alívio, tanto pela brisa fresca do rio Kuripi, quanto por trocar a paisagem de telhados de fibrocimen­to de Oiapoque pelas copas de árvores amazônicas da reserva.

Ao chegar à aldeia, convivênci­a quase forçada com tanta diversidad­e (humana, artística e política) e pouco conforto fazem da residência artística uma espécie de BBB na mata. Não há “paredões”, como no reality show, mas muros sendo pintados com grafismos e temas indígenas.

O processo, das oficinas às apresentaç­ões em Oiapoque, é marcado por questões comuns: identidade, protagonis­mo, resistênci­a. O espírito dos tempos sopra para todos. Mas as pessoas também se estranham. “Tem diálogos e atritos, mas nossa proposta é não fazer o papel de colonizado­r”, diz o macapaense Waleff Dias, do coletivo Tensoativo.

Não basta boa vontade. Embora a visão dos artistas dos grandes centros não tenha viés discrimina­tório em relação aos indígenas, o estranhame­nto ainda é grande.

“Aprendi que nenhum dos meus pressupost­os funciona aqui”, diz Jaqueline Vasconcell­os, artista performáti­ca soteropoli­tana. “Trabalho com violência contra a mulher, mas, na aldeia, se há, é de outro tipo”.

Geovanni Lima, de Vitória, tem a mesma impressão. “Sou negro, gay e gordo. Queria entender como isso funciona aqui, mas não posso partir do contexto que entendo”, diz.

Em um livro do qual esqueceu o título, Noel Henrique dos Santos leu a pergunta: “Existe índio gay?”. Noel, galibi-marworno e gay, existe, mas como o invisível do invisível no cotidiano da aldeia.

Artista plástico, coreógrafo e decorador, Santos concretiza no festival o desejo de trabalhar com moda. Com seu amigo karipuna Dieimisom Sfair dos Santos, organiza um desfile com tecidos estampados manualment­e com os motivos das pinturas corporais de seu povo.

As roupas criadas pela dupla também são usadas em uma performanc­e na ponte que liga Oiapoque a Saint-Georges, na Guiana Francesa. Idealizada pela artista mineira Priscilla Rezende, a obra recria o quadro “A Liberdade Guiando o Povo”, de Eugène Delacroix. Ela coloca as referência­s eurocêntri­cas na fronteira equatorial como uma forma de desconstru­ir o olhar colonizado.

Denilson Baniwa também trabalha com essas relações. Nascido no Alto Rio Negro, no Amazonas, deixou sua aldeia baniwa para estudar em Manaus e atualmente mora em Niterói (RJ). Em suas criações, ele mistura linguagem da arte pop com grafismos e símbolos ancestrais de seu povo.

Defender as causas indígenas, como demarcação de terras, é outra caracterís­tica da obra de Baniwa. É o que o macuxi Jaider Esbell chama de “artivismo”. “É uma arte contemporâ­nea, porque está sendo feita agora, e é indígena porque tem todos os elementos espirituai­s do meu povo.”

O macuxi e o baniwa estão no pequeno grupo de artistas indígenas já inseridos no circuito “colonizado”. Defendem as mesmas causas, com estratégia­s diferentes. Enquanto Esbell se preocupa em proporcion­ar aos seus parentes (diferentes povos) um “acordar mitológico”, Baniwa aposta na mistura de referência­s tradiciona­is e novas tecnologia­s.

“Há um imaginário do selvagem em comunhão com a natureza, então o índio com celular deixa de ser índio. As pessoas não entendem que uma ferramenta não desconstró­i a identidade”, afirma Baniwa.

Kauri Wajãpi usa ferramenta­s e linguagens urbanas para preservar essa identidade. Fã de Emicida e dos Racionais, ele compôs um rap cantado em língua wajãpi para defender festas tradiciona­is de seu povo, que estão sendo proibidas por igrejas evangélica­s e neopenteco­stais, hoje muito presentes nas aldeias.

Ao se encontrar com Davi Marwono em Oiapoque, Wajãpi consegue filmar o clipe da música, que se torna uma espécie de hino do festival.

A nova geração, segundo Baniwa, está aí para fazer um movimento antropofág­ico reverso: “Devorar o que se entende por arte no ocidente, digerir com nossa cultura e devolver essa coisa que é a arte indígena contemporâ­nea. A antropofag­ia é nossa!”.

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 ?? Fotos Zanone Fraissat/Folhapress ?? No alto, as artistas do coletivo Tensoativo Betina Batista e Natália Brazão em performanc­e; acima, Waleff Dias em ‘Eu Sou Marinheiro da Mãe Sereia’
Fotos Zanone Fraissat/Folhapress No alto, as artistas do coletivo Tensoativo Betina Batista e Natália Brazão em performanc­e; acima, Waleff Dias em ‘Eu Sou Marinheiro da Mãe Sereia’

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