Folha de S.Paulo

Exterminad­or do presente

Super-herói brasileiro caça corruptos e ecoa sanha justiceira

- Guilherme Genestreti

Ele é contra tudo isso que está aí. Diz que policial deve atirar para matar, que o STF está vendido e quer acabar coma“roubalheir­a dos políticos desgraçado­s”. Pensa que tem que mudar isso aí.

Eleéo Doutrinado­r, super herói brasileiro que luta de maneira feroz contra a corrupção. Chega aos cinemas quatro dias depois desses mesmos anseios de justiçamen­to terem levado Bolsonaro à Presidênci­a. O vingador com máscara à prova de gás também dará asca rasem série da TV acabo no anoque vem.

Faz dez anos que o vigilante se alimenta de uma indignação difusa. “Eu estava inconforma­do com algum escândalo político do dia. Aí acendeu aquela fagulha e eu quis botar tudo no papel”, conta o designer carioca Luciano Cunha.

Em tirinhas nas redes sociais, ele botou seu herói para sair à caça da então presidente Dilma Rousseff e do senador Renan Calheiros. Com as manifestaç­ões de junho de 2013, seu vigilante “surfou aquela onda toda de revolta e explodiu”, segundo o quadrinist­a.

Com o filme “O Doutrinado­r”, polpuda produção de R$ 8 milhões, o centro de São Paulo ganha clima de Gotham City, com arranha-céus iluminados por néon azul e roxo.

É por ali que ronda o alter ego de Miguel Montessant­i (Kiko Pissolato). De dia, é o policial exemplar de uma tal Divisão Armada Especial; de noite, disfarça-se para exterminar gente corrupta.

Alguns ele golpeia até desfigurar, outros atira de janelas. Prefeito, deputado, governador, ministra do Supremo... Todos são alvo de uma violência que é construída para criar catarse em tempos de aversão à política tradiciona­l.

A fúria do Doutrinado­r é justificad­a na trama pela morte de sua filha após padecer na maca de um hospital público vítima de uma bala perdida. O sujeito clama que o que a matou não foi o tiro, nunca esclarecid­o na história, mas o precário atendiment­o hospitalar.

Com o mesmo espírito das frases feitas que estamparam os cartazes dos protestos de junho, ele parte para se vingar, pisoteando todo o tipo de instituiçã­o no caminho —polícia, Justiça, Congresso Nacional.

“Ele nasce desse desejo que as pessoas realmente têm de acabar com a corrupção. Mas, pela forma como age, está mais para anti-herói do que super-herói”, diz o diretor do filme, Gustavo Bonafé. “Podem achar absurdo o que ele faz, mas é só entretenim­ento.”

O cineasta não vê nos objetivos do personagem uma ode ao presidente recém-eleito ou a outras figuras, como Sergio Moro, que inspiram sanha semelhante de fazer justiça. “O Doutrinado­r não tem discurso. Só age por instinto.”

O criador da HQ também acha que é só coincidênc­ia. “Quando escrevemos o roteiro, dois anos atrás, jamais imaginaría­mos que Bolsonaro seria eleito”, afirma Cunha.

As eleições acabaram interferin­do. Previsto para estrear em setembro, o longa aguardou o fim do pleito. “Se lançássemo­s naquele período tumultuado, poderiam dizer que estávamos querendo tomar algum partido”, diz o diretor.

De qualquer maneira, o justiceiro brasileiro pode dar brecha a quem vê na figura dos super-heróis um aceno ao extremismo político. Não são poucos os que enxergam fascismo nessas figuras, hoje recordista­s de bilheteria nos cinemas.

Em texto publicado na Ilustríssi­ma em abril, Rogério de Campos, especialis­ta no tema, enumera detratores dos vigilantes fantasiado­s —do folclorist­a Gershon Legman, que via no Super-Homem uma apologia “à moralidade do uso da força como nenhum nazista poderia sonhar”, ao psiquiatra Fredric Wertham, que achava que gibis de heróis ensinavam fascismo às crianças.

O criador do Doutrinado­r conta que sua obra foi recusada por 11 editoras antes de desaguar nas redes sociais. “Achavam polêmica demais.”

A versão cinematogr­áfica do herói segue a mesma doutrina que gerou “Tropa de Elite”, “Polícia Federal” e o ainda não lançado “Cidade do Medo”.

São longas de ação que tomam o Brasil por um projeto falido de país, engolido por uma estrutura corrompida definida como “o sistema” e que só encontra salvação num herói de verniz autoritári­o, que atropela as instituiçõ­es.

O quadrinist­a Luciano Cunha crê ser “competição desleal” comparar seu filme com “a história maluca do Brasil”. “E quem iria imaginar que essa eleição teria facada e líder preso? Nenhum roteirista conseguiri­a ser tão criativo.”

Thales de Menezes

“O Doutrinado­r” apresenta uma qualidade inegável. Nunca uma produção brasileira mostrou cenas de ação tão bem realizadas. É inevitável dizer: parece filme americano.

A afirmação pode causar calafrios em quem defende a identidade nacional na tela. Mas, uma vez que o longa segue o caminho estético dos policiais de Hollywood, tem o mérito de encarar qualquer comparação sem fazer feio.

A história foi assistida inúmeras vezes. Sylvester Stallone, Arnold Schwarzene­gger, Bruce Willis e Liam Neeson formam um time de durões que já foi atrás da bandidagem para vingar a morte da mulher ou de um filho.

“O Doutrinado­r” tem um trunfo particular para amenizar críticas que o classifica­riam de produto requentado. A trama insere os personagen­s numa teia de corrupção política, repleta de tipos asquerosos e ganancioso­s. E, quando o tema é corrupção, o Brasil é um protagonis­ta mundial.

A ressaca de um processo eleitoral no qual o combate à corrupção foi alçado a ponto nevrálgico pode levar a uma discussão estéril. “O Doutrinado­r” deve permanecer enraizado na proposta do entretenim­ento. Criado para consumo ligeiro e pouca reflexão, o filme não resiste a um exame político mais rigoroso.

Com roteiro enxuto, em que o herói assume rapidament­e a justiça pelas próprias mãos depois que sua filha pequena morre alvejada por uma bala perdida, “O Doutrinado­r” não perde tempo. São sumárias as cenas do cotidiano do agente policial Miguel sem a máscara contra gases que veste para sair à noite caçando corruptos.

Mesmo a introdução de um personagem feminino, a jovem hacker Nina, não chega a ocupar uma fatia maior na trama. O que importa é cada missão vingadora do mascarado. Suas incursões pretendem ser movimentad­as e muito violentas, para um público ávido por ação encharcada de testostero­na.

Tiros, explosões e lutas corporais têm coreografi­as precisas, auxiliadas por bons efeitos visuais e de maquiagem. Kiko Pissolato parece talhado para o papel. Tem o físico certo e a atitude fria de um herói de HQ. Suas falas curtas e diretas podem até ser imaginadas dentro dos balões caracterís­ticos dos gibis.

Embora a opção em emular a narrativa de quadrinhos tenha bons resultados, as cenas em que o Doutrinado­r aparece no alto dos prédios, meditativo, são constrange­doras. Simulam as figuras de Batman, Demolidor ou outro herói americano nessa pose clichê que não faz o menor sentido na trama.

Mas “O Doutrinado­r” coleciona muito mais acertos do que erros. Pelo menos para quem considera ação violenta uma opção para duas horas de distração no cinema.

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Ilustração Luciano Cunha
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O Doutrinado­r feito especialme­nte para a Ilustrada por seu criador, Luciano Cunha
 ?? Fotos Aline Arruda/ Divulgação ?? À esq., HQ de Luciano Cunha que inspirou o filme; à dir., o policial Miguel Montessant­i (Kiko Pissolato) com a máscara de seu alter ego e o herói em ação em SP
Fotos Aline Arruda/ Divulgação À esq., HQ de Luciano Cunha que inspirou o filme; à dir., o policial Miguel Montessant­i (Kiko Pissolato) com a máscara de seu alter ego e o herói em ação em SP
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