Folha de S.Paulo

São Paulo-Kiribati, Pupila Airlines

Queria ter uma varanda com vista pro mar e chamar o vento pelo nome

- Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”

“De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde.”

Eu queria ter uma varanda com vista pro mar, queria poder chamar o vento pelo nome e saber descrever as espumas feito Rubem Braga, como “bichos alegres e humildes”. Não tenho, não posso, não sei —e da minha janela vejo só outras janelas sob o céu cinzento, fustigado pelos pararaios. À minha direita, porém, quase ao alcance da mão, fica o mundo.

O mundo tem dimensões espetacula­res, 2,5 m x 1,5 m e foi conquistad­o em 2013, na Feira de Frankfurt. O vendedor do estande, entre mapas ultra detalhados de vilarejos na Escócia, mapas gigantes do metrô de Londres, mapas antigos com desenhinho­s de cimitarras sobre o rio Eufrates e canibais sobre o Amazonas, me explicou que aquele mapa-múndi estava com desconto por conta de “pequenos defeitos”. Perguntei se teriam posto Guayaquil como capital da Finlândia ou Helsinque ao lado de Quixeramob­im. O alemão não riu e explicou que o defeito era no plástico protetor, descolando de leve na banda oriental, já passando das ilhas Fiji e ameaçando deixar toda a população da Nova Caledônia ao alcance da umidade, das traças e de eventuais respingos de café. Resolvi o problema logo que cheguei ao Brasil, com um bastão de cola Pritt —se avançasse sobre a Nova Caledônia, o descolamen­to logo atingiria Vanuatu e dali pra Austrália era dois centímetro­s.

Preguei o mundo ao meu lado, no escritório, e agora toda vez que me sinto oprimido pelas janelas e pelo céu cinzento —metáfora barata para esta época avarenta—, saio da frente do computador, paro diante do mundo e escapo, por exemplo, para Kiribati.

A República de Kiribati é composta por 33 ilhas “com atóis e recifes espalhados por uma vasta área ao centro do Oceano Pacífico”, diz a Wikipedia. Adeus, plúmbeas nuvens, adeus, para-raios, aqui estou eu, de máscara e snorkel, vendo um peixe palhaço passear pelas anêmonas. Em breve sairei do mar, sentarei na areia e, bebericand­o meu gim-tônica, pensarei algo como “O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes”.

Nem sempre dou sorte de cair em areias brancas —é o risco de viajar pela Pupilas Airlines. Meu olho pode aterrissar, por exemplo, no lago Amadjuak, extremo norte do Canadá. Não me aflijo. Penso: “É Canadá, auge da civilizaçã­o”. Me vejo diante do fogo, num bar todo de madeira, tomando um chocolate quente e explicando para um homem alto, gordo e rosado, o que faço tão longe de casa. Ele se lembrará, talvez, do Senna e dirá que há muitos anos, em Montreal, conheceu uma garçonete brasileira chamada Julienne.

Tenho andado bastante por aí, ultimament­e. Comi vitela com cerveja em Liechtenst­ein, visitei um templo budista de mil anos no Camboja; na Macedônia provei tomates que fariam os caquis pedirem perdão pela própria secura e vi o sol se pôr do lombo de um elefante numa reserva em Botsuana.

Dizem que o mundo vai mal. Que um vírus autoritári­o está contaminan­do as democracia­s, que há muito plástico nos oceanos e que o aqueciment­o global pode varrer do mapa meu querido Kiribati. Mentira. Estou agora mesmo diante do mapa: o mundo segue colorido e reluzente e se alguma ameaça erguer-se em suas franjas terá de se curvar sob o meu bastão de cola Pritt.

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Adams Carvalho

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