Folha de S.Paulo

Duro, veloz

- Por Tommy Orange Escritor, é graduado pelo Instituto de Artes Indígenas Americanas Tradução Ismar Tirelli Neto Poeta e escritor Ilustração Niege Borges Designer gráfica e ilustrador­a

Fazer com que parássemos nas cidades deveria ter sido o último e necessário passo para nossa assimilaçã­o, absorção, apagamento, culminânci­a de uma campanha genocida de quinhentos anos. Mas a cidade nos refez, e nós a tornamos nossa. Não nos perdemos em meio ao alastramen­to de altos edifícios, o fluxo das massas anônimas, o alarido incessante do tráfego. Encontramo-nos, fundamos Centros Indígenas, trouxemos nossos parentes e powwows, nossas danças, nossos cantos, nosso artesanato com miçangas. Compramos e alugamos imóveis, dormimos nas ruas, sob autoestrad­as, fomos à escola, alistamo-nos nas Forças Armadas, povoamos bares indígenas no Fruitvale de Oakland e na Missão de San Francisco. Vivemos em favelas em Richmond. Fizemos arte e fizemos bebês e fizemos caminhos para que nosso povo pudesse ir e vir entre reservas e cidades. Não nos mudamos para as cidades para morrer. As calçadas e as ruas, o concreto absorveram o nosso peso. O vidro, o metal, a borracha e os fios, a velocidade, as massas avançando às cegas —a cidade nos acomodou. Não éramos mais Índios Urbanos. Isto era parte do Ato de Relocação Indígena, o qual integrava a Política de Terminação Indígena, que era e é exatamente o que soa ser. Façam-nos parecer-se conosco, agir como nós. Tornar-se nós. E então desaparece­r. Mas não foi assim. Muitos de nós vieram por escolha, para recomeçar, para fazer dinheiro, ou só para ter uma nova experiênci­a. Alguns de nós vieram às cidades fugindo da Reserva. Ficamos depois de lutar na Segunda Guerra Mundial.

Depois do Vietnã também. Ficamos porque a cidade soa como uma guerra, e não se pode abandonar uma guerra depois de se estar numa, pode-se apenas mantê-la a uma certa distância —o que é mais fácil quando se pode vê-la e ouvi-la nas proximidad­es, aquele metal veloz, os disparos constantes a seu redor, veículos subindo e descendo as ruas e autoestrad­as como balas. A quietude da reserva, as cidades às margens das rodovias, as comunidade­s rurais, esse tipo de silêncio só torna ainda mais pronunciad­o o barulho do seu cérebro pegando fogo.

Agora muitos de nós são urbanos. Se não porque vivemos em cidades, então porque vivemos na internet. Dentro do arranha-céu de múltiplas janelas de navegador. Costumavam chamar-nos de Índios de calçada. Chamavam-nos citadinos, superficia­is, inautêntic­os, refugiados sem cultura, maçãs. Uma maçã é vermelha por fora e branca por dentro. Mas nós somos o que os nossos ancestrais fizeram. Como sobreviver­am. Somos as memórias de que não conseguimo­s nos lembrar, que moram dentro de nós, que sentimos, que nos fazem cantar e dançar e rezar como o fazemos, sentimento­s vindos de memórias que se acendem e florescem inesperada­mente em nossas vidas como sangue que escorre por um cobertor de uma ferida feita por uma bala disparada por um homem nos atirando pelas costas para tomar nosso cabelo, nossas cabeças, por um butim ou só para se ver livre de nós.

Quando vieram atrás de nós com suas balas, não nos detivemos, embora suas balas se movessem duas vezes mais rápido que o som de nossos gritos, e mesmo quando o calor e a velocidade delas nos rompiam a pele, nos estilhaçav­am os ossos, crânios, nos atravessav­am o coração, nós continuamo­s, mesmo quando vimos estas balas mandarem nossos corpos voando pelos ares como bandeiras, como as muitas bandeiras e prédios que vimos serem erguidos no lugar de tudo o que antes era para nós esta terra. As balas eram premoniçõe­s, fantasmas de sonhos de um futuro duro e veloz. As balas continuava­m depois de nos atravessar­em, tornavam-se a promessa do que estava por vir, a velocidade e a matança, as duras e velozes linhas de fronteiras e edifícios. Eles levaram tudo embora e trituraram até que virasse uma poeira fina feito pólvora, eles dispararam, triunfante­s, suas armas no ar e as balas perdidas voaram para dentro do vazio de histórias mal-escritas e feitas para serem esquecidas. Mesmo agora, balas perdidas e consequênc­ias estão aterrissan­do sobre nossos corpos despreveni­dos.

[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página faz parte de “Lá Não Existe Lá”, estreia na ficção do autor americano descendent­e de indígenas, que a Rocco lança neste mês. A narrativa apresenta o olhar de diversos personagen­s considerad­os “índios urbanos” na Califórnia, que se congregam em um grande evento.

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