Folha de S.Paulo

Homem torturado na prisão processa Magno Malta por associá-lo a pedofilia

Hoje inocentado, ex-cobrador de ônibus capixaba diz que senador fez ‘circo’ com seu caso em CPI

- Anna Virginia Balloussie­r

Luiz Alves de Lima, 45, quase não consegue ler o processo que move contra o senador Magno Malta (PR-ES).

Perdeu toda a vista no olho direito, e na do esquerdo lhe restou uns 25%. Usa uma lupa.

Ele conta que a visão se foi de tanto apanhar na prisão, em 2009. Mostra os dentes: um deles é só um cotoco, pois, diz, “pegaram o alicate e foram apertando até estourar”.

Luiz era cobrador de ônibus. Numa tarde de abril, Cleonice Conceição, 32, a mulher por quem se apaixonou num terminal, levou a filha deles de dois anos ao médico. Ele foi ficando preocupado, pois já era noite e nada delas. “Aí chegou a polícia e pensei o pior, que tinha acontecido um acidente”, conta. Mas não: colocaramn­o numa viatura, sob acusação de estuprar a filha, com a esposa cúmplice do crime.

No terceiro dia de detenção, o senador chegou “com um batalhão de gente”, imprensa inclusa, e assumiu o papel de “juiz, promotor, delegado”, diz Lima. Em seu relatório, o delegado do caso atestou: Malta “manifestou-me que, por sentimento pessoal e experiênci­a profission­al, entende ser o pai da criança o autor do delito”.

Ele passou nove meses no CDPC (Centro de Detenção Provisória de Cariacica), que usava contêinere­s como cela, situação anos depois classifica­da como desumana pelo Superior Tribunal de Justiça.

Diz ter sido torturado por mascarados que se revezavam no “quadrado com banheirinh­o” onde ficava. “Passei o aniversári­o num tonel cheio de gelo, botaram minha mão pra trás.”

Uma notícia-crime assinada por Luiz e recebida em setembro pelo Ministério Público Federal capixaba responsabi­liza agentes do CDPC por sessões de tortura que teriam incluído “sacola na cabeça e choques”.

À Folha, no escritório de seu advogado, ele afirma que não saberia identifica­r os algozes. O que diz com confiança é que talvez nada daquilo tivesse acontecido se não fosse pelo “circo” montado por Malta, um dos principais aliado do presidente eleito Jair Bolsonaro e cotado para um ministério na área social.

Um dos aliados mais cortejados por Jair Bolsonaro na campanha presidenci­al, e citado como possível ministro no governo do presidente eleito, o baiano que fez carreira no Espírito Santo presidia a CPI da Pedofilia em 2009.

No mesmo mês em que Luiz foi preso, o senador prometeu no plenário que “os pedófilos desgraçado­s” estavam com “os dias contados”.

Inocentado em todas as instâncias da Justiça, o ex-cobrador de ônibus, que ficou incapacita­do após a cegueira parcial, processa o senador, o estado e o médico responsáve­l pelo laudo que o colocou na posição de suspeito.

Franz Simon atuou como defensor público de Luiz numa das frentes do estado contra ele, que corria na Vara da Violência Doméstica( pela suposta agressãoàf ilha ). Cleonice levara acriança ao hospital para tratar de oxiúro, verme que pode provocar coceira na região genital, por inflamação.

A família, na época, morava numa casa “com 17 cachorros, um monte de gatos, o quintal sujo e uma irmã que guardava lixo[ era acumulador­a ]”, lembra Luiz, que tem mais dois filhos com Cleonice e um rapaz e duas meninas com outra mulher.

Uma médica desconfiou de violência sexual e chamou o Conselho Tutelar. Um médico legista, então, avaliou o “desvirgina­mento da vítima”, e o caso acabou na Polícia Civil.

Posteriorm­ente, uma perita examinou a criança e constatou que o hímen estava intacto. À Justiça o responsáve­l pelo primeiro parecer depois alegaria que o hímen pode se regenerar. Hoje defensor aposentado, Franz questiona: o caso já é frágil e “vai acontecer justamente com ela, uma coisa rara na literatura médica?”.

“Houve um teatro”, segundo Franz. O depoimento de Luiz, diz, “foi atrasado até que o aparato da CPI chegasse, ele acabou sendo o bode expiatório”.

Luiz afirma que não foi encaminhad­o ao Instituto Médico Legal, oque deve antecedera condução deu ms us peitoà prisão, com omanda o protocolo.

Cleonice conta que ficou 42 dias presa eque, na cadeia, recebeu uma visitado congressis­ta .“Quando cheguei no presídio, tenteif alarpara a polícia que tinha vários papéis da neném pra mostrar que ela tava com oxiúro. O Magno falou que, se não acusasse Luiz, nunca mais ia ver minha filha. No momento de desespero cheguei a acusar ele, sim.”

Uma reportagem de um jornal local relatou à época que a servidora pública municipal “disse que já viu o marido visitando sites suspeitos na internet”. Luiz até hoje carrega o CPU do computador periciado atrás de pornografi­a.

Abebê passou três meses num abrigo, de onde saiu “coma cabeça cheia de pereba, de piolho ”, afirma opai.

Os pais depois ficaram sabendo que afilha iri apara a adoção —o que só não se concretizo­u porque, segundo Luiz, a mãe da esposa “vendeu o que tinha, geladeira, casa, fogão, por R $10 mi leve ioda Bahia ”.

A Justiça já inocentou Luiz em todas as instâncias, mas o casal passou anos sem aguardada filha. Amenina chegou a dizer a uma psicóloga temer que o pai, ausente de sua vida, não gostasse dela. Hoje Luiz e Cleonice não têm aguarda definitiva, só a provisória.

Em setembro, quando concorria à reeleição num pleito do qual sairia derrotado, Malta gravou um vídeo afirmando que, “na CPI da Pedofilia, vagabundo, nós perseguimo­s”.

No mesmo mês, o Ministério Público recepciona­va a notícia-crime contra ele. “Agora, vagabundo ofendido correu para a Justiça. É direito de cada um, não é verdade?”

Hoje afilha de Luiz e Cleonice tem 12 anos e ainda não mora com eles—espera o ano letivo acabar para, em 2019, começar na mesma escolados irmãos. “Ela ainda tá com vozinha dela”, conta a mãe.

Opai diz que afilha“gosta de dançar e cantar negócios de adolescent­e”, sobretudo BTS, uma boy band de k-pop (pop coreano). “Ela tá bem, mas bem entre aspas. Ninguém fica 100% bem sem os pais.”

“Passei o aniversári­o num tonel cheio de gelo Luiz Alves de Lima sobre o período em que ficou na prisão, após a acusação

“Afirmei na época o que tenho dito: pedófilos devem ser investigad­os, condenados e presos. Pedofilia é crime hediondo Magno Malta senador pelo PR-ES

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Gabriel Lordello/Mosaico Imagem/Folhapress O ex-cobrador Luiz Alves de Lima, 45, que foi inocentado de acusações em todas as instâncias
 ?? Jonas Pereira - 19.mai.10/Agência Senado ?? Magno Malta, em sessão da CPI da Pedofilia, em 2010
Jonas Pereira - 19.mai.10/Agência Senado Magno Malta, em sessão da CPI da Pedofilia, em 2010

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