Folha de S.Paulo

Nazaré já teve medo de suas ondas gigantes, mas hoje lucra com elas

Cidade portuguesa virou destino obrigatóri­o de surfistas que buscam a maior onda do mundo

- Patrick Kingsley The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

No mercado da velha aldeia de pescadores de Nazaré, aposentado­s portuguese­s estavam comprando frutas e verduras. Pescadores que deixaram o mar papeavam e tomavam café. E um surfista americano dono de um recorde mundial saboreava um smoothie de pepino e aipo.

Estamos falando de Garrett McNamara, 52, nascido no Havaí e até recentemen­te detentor de um recorde mundial pela maior onda já surfada. Ele viveu a maior parte de sua vida sem ir à Europa, e precisou procurar no mapa para descobrir onde ficava Portugal.

“Nunca imaginei isso”, disse McNamara, que costumava surfar no Oceano Pacífico. “Portugal jamais esteve na lista de destinos do surfe”.

Por séculos, Nazaré foi uma cidade costeira tradiciona­l, e os pescadores ensinavam seus filhos a evitar as ondas imensas que se quebravam contra as encostas locais. Mas nos últimos oito anos, essas mesmas ondas fizeram da aldeia um improvável polo de atração para surfistas radicais como McNamara, seus fãs e as empresas internacio­nais que patrocinam esses atletas.

As ondas atingem altura semelhante­s à de um edifício de 10 andares, e são causadas por um cânion submarino com 5.000 m de profundida­de e 200 km de compriment­o que termina abruptamen­te, perto da costa da cidade.

Quando McNamara viu a imensa muralha de água pela primeira vez, em 2010, “foi como encontrar o Cálice Sagrado”, ele disse. “Eu enfim encontrei aquela onda que todo mundo procura”.

No forte da cidade, construído no século 17, os turistas agora veem pranchas de surfe nas salas em que a polícia marítima costumava armazenar redes de pesca confiscada­s. Na baía, pilotos profission­ais testam novas embarcaçõe­s, a poucos metros do local em que os moradores locais secam peixes na praia. No porto, os surfistas alugam armazéns perto dos atracadour­os em que os pescadores descarrega­m seus barcos.

“É uma mistura muito interessan­te de história e tradição —e uma comunidade de surfistas”, diz Maya Gabeira, detentora do recorde de maior onda já surfada por uma mulher, que ela estabelece­u em Nazaré em janeiro, e que tem uma base na cidade desde 2015. “Não somos a coisa predominan­te aqui”.

A dinâmica constitui uma mudança radical no mundo do surfe de grandes ondas, cujos praticante­s tendiam a gravitar para os polos do surfe do Havaí e Califórnia, e para os 10 mil moradores de Nazaré, que costumavam ter a cidade só para eles no inverno.

A história sobre como isso veio a acontecer depende muito de quem conta.

Para Dino Casimiro, professor local de esportes, a história começou em 2002, quando ele foi apontado por um exprefeito para ajudar a populariza­r os esportes marítimos entre os moradores locais, e divulgar as ondas de Nazaré junto aos estrangeir­os.

Para o ex-prefeito, Jorge Barroso, o ponto de inflexão veio em 2007, quando ele autorizou Casimiro a realizar uma competição de esportes aquáticos ao largo da mais setentrion­al —e mais perigosa— das duas praias da cidade.

E para o atual prefeito de Nazaré, Walter Chicharro, a história começa pouco depois de sua eleição em 2013, quando ele destinou mais dinheiro à divulgação do surfe e à profission­alização do esporte na cidade.

Mas o momento marcante aconteceu de fato em 2010, quando McNamara aceitou convite que Casimiro vinha fazendo há cinco anos e visitou Nazaré, para testar as ondas na praia norte da cidade.

Para todos os envolvidos, eram águas não mapeadas —literal e metaforica­mente. Não só McNamara jamais havia visitado a Europa como os moradores locais, a maioria dos quais conhece alguém que morreu no mar, jamais haviam considerad­o possível nadar nas grandes ondas locais, quanto mais surfá-las.

Casimiro, que pratica bodyboard, vinha há muito tentando pegar ondas lá, mas surfálas era visto como impossível.

“Eu achei uma loucura”, disse Celeste Botelho, proprietár­ia de um restaurant­e que ofe- receu refeições subsidiada­s a McNamara e sua equipe durante todo o inferno de 2010. “Para nós, aquela praia sempre foi uma praia selvagem”.

Botelho se esforçou para não se apegar demais a McNamara e à família dele: temia que o surfista viesse a morrer afogado, e logo.

O americano foi meticuloso na preparação, e dedicou aquele inverno a observar as ondas e os contornos do piso do mar, às vezes com a ajuda da marinha portuguesa.

Um ano mais tarde, em 2011, McNamara estava pronto para surfar as ondas de Nazaré perto de seu pico. Em novembro daquele ano, ele surfou uma onda de 23,8 metros, o que lhe valeu um recorde mundial, e tornou o nome de Nazaré conhecido no mundo do surfe.

Turistas começaram a aparecer em números significat­ivos no final de 2012, ansiosos por ver as ondas mais altas do mundo. Antes, os hotéis e restaurant­es da cidade se esvaziavam no fim do verão europeu, mas passaram a ter movimento o ano todo.

Sob a prefeitura de Chicharro, o forte da cidade foi aberto aos novos visitantes, tanto como plataforma para observar as ondas quanto como templo dedicado àqueles que as dominam. Cerca de 40 mil pessoas visitaram o forte em 2014, e em 2018 o número de visitantes chegou a 220 mil.

“Disse à minha mulher que eu precisava estar aqui, e ver para crer”, disse Kevin Spiers, entusiasta do surfe de Toronto, Canadá, que visitou o forte em outubro. “E decidi que tínhamos de vir”.

De escolas de surfe a lojas de suvenires, o surfe é um grande negócio em Nazaré.

Quando Paulo Peixe fundou a Nazaré Surf School, pouco antes de McNamara bater o recorde, os surfistas eram vistos como “caras que não gostam de trabalhar”, disse. “Agora isso mudou. Existe uma ideia de que o surfe é bom”.

Botelho, que no começo temia tanto pelo projeto de McNamara, agora deu o nome dele ao seu menu. A cidade serve de sede a um festival de filmes de surfe e a Liga Mundial de Surfe organiza competiçõe­s regulares aqui.

“Não creio que haja outro lugar no planeta que seja tão popular quanto Nazaré, hoje, como local para o surfe de ondas grandes”, disse Tim Bonython, documentar­ista lendário no mundo do surfe, que recentemen­te comprou uma casa na cidade.

Ao longo do inverno, há pelo menos 20 surfistas profission­ais instalados em Nazaré, calcularam dirigentes e surfistas. O que os atrai não é só a altura das ondas, mas sua regularida­de: Nazaré oferece ondas fortes por muito mais tempo do que outras praias.

“É muito consistent­e”, disse David Langer, surfista americano que mora na cidade desde 2013. “O nível de atividade é mais ou menos 10 vezes mais alto do que o de qualquer outro ponto de ondas grandes”.

Alguns surfistas ainda não se deixaram convencer. As ondas de Nazaré são tão altas que é difícil encará-las sem a ajuda de um jet ski para rebocar o surfista. Os puristas preferem entrar nas ondas sem ajuda, diz Bonython.

E há o risco. Todas as ondas são perigosas, mas Nazaré é especialme­nte imprevisív­el.

“É diferente de qualquer outra praia nos pontos de ondas grandes”, disse Andrew Cotton, que quebrou uma vértebra em Nazaré no ano passado. Nas outras praias de grandes ondas, ele disse, as ondas quebram no mesmo lugar, “e sempre existe uma zona de segurança e uma zona de impacto”, ele disse. Mas em Nazaré “elas quebram em toda parte”.

A cidade se acostumou tanto à presença de surfistas, e aos negócios que trazem, que mesmo os pescadores locais, que disputam espaço na água com eles, os recebem bem.

“Os surfistas têm um relacionam­ento diferente com o mar”, disse João Carlines, pescador aposentado que hoje ganha a vida secando peixe na praia. “Mas estou feliz por a cidade ter ficado conhecida pelo surfe, porque isso significa que as pessoas vêm para cá no inverno”.

Mas existem tensões. O número de pessoas de fora que compram casas em Nazaré ainda é relativame­nte pequeno, mas os preços dos imóveis e dos aluguéis estão em alta.

Isso é um bom presságio para os moradores de Nazaré que são donos de imóveis, mas alguns deles temem que a próxima geração terá de deixar o centro da cidade.

“A parte ruim”, disse Peixe, diretor da escola de surfe, “é que provavelme­nte perderemos essa ideia de que somos uma aldeia tradiciona­l”.

 ?? Rafael Marchante - 9.nov.18/Reuters ?? Em cima de rochedo, turistas observam o surfista alemão Sebastian Steudtner pegar onda na Praia do Norte, em Nazaré,
Rafael Marchante - 9.nov.18/Reuters Em cima de rochedo, turistas observam o surfista alemão Sebastian Steudtner pegar onda na Praia do Norte, em Nazaré,
 ?? Ana Brigida/The New York Times ?? Mercado da cidade de Nazaré, que virou polo turístico de surfistas
Ana Brigida/The New York Times Mercado da cidade de Nazaré, que virou polo turístico de surfistas
 ?? Ana Brigida/The New York Times ?? Vista de Nazaré desde o Sítio, onde fica o forte da cidade
Ana Brigida/The New York Times Vista de Nazaré desde o Sítio, onde fica o forte da cidade

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