Folha de S.Paulo

Baú de Bob Dylan dá duas boas crias tanto para fãs quanto para iniciantes

‘Bootleg Series Vol. 14’ mostra volta do cantor ao folk em 1974; CD duplo traz versões impecáveis

- Ivan Finotti

O 14º volume da “Bootleg Series” de Bob Dylan, uma coleção de faixas descartada­s, versões não utilizadas e às vezes não inéditas de sua carreira de 56 anos, foca a produção de um de seus álbuns mais admirados, “Blood on the Tracks”, de 1975.

É o disco dos clássicos “Tangled up in Blue”, “If You See Her, Say Hello” e “Idiot Wind”. Foi feito no momento em que o casamento de Dylan com Sara Lownds se desintegra­va e as músicas contam essa história.

O filho do casal, Jakob Dylan, hoje também cantor e compositor, diria ao biógrafo Howard Sounes que “Blood on the Tracks” lembrava seus “pais conversand­o”.

Nada mais triste: “Tangled Up in Blue” significa “enroscado na tristeza” e “Idiot Wind” (vento idiota) traz versos como “Vento idiota/ Soprando a cada vez que você move os dentes/ Você é uma idiota, querida/ É incrível que você ainda saiba como respirar”.

Além disso, Dylan voltava para a Columbia Records, que havia sido sua gravadora de 1962 a 1973, após lançar um disco de estúdio e um ao vivo na Asylum.

O lançamento vem em duas possibilid­ades. A primeira é um CD (ou dois LPs) com versões alternativ­as das dez músicas originais mais uma de “Up to Me”, que foi gravada naquela época, mas saiu apenas em 1985, na coletânea quíntupla “Biography”.

A edição de luxo, importada (US$ 115; R$ 425, fora impostos) é para fãs mesmo —são seis CDs com todas as versões gravadas das 11 canções, mais uma ou duas agregadas. Todas? Todas. São sete versões de “You’re a Big Girl Now”, o mesmo número de “Simple Twist of Fate”, 11 de “You’re Gonna Make me Lonesome When You Go” e por aí vai.

“Blood on the Tracks” (sangue nas faixas) foi gravado em seis dias, divididos em duas fases. Em setembro de 1974, Dylan foi ao estúdio da Columbia em Nova York quase sozinho, onde ficou por quatro dias. Tinha um baixista para acompanhá-lo, às vezes. Era um retorno ao espírito folk de seus primeiros álbuns: um banquinho, um violão e uma gaita.

Naquele momento, o rock’n’roll não estava satisfazen­do Dylan. “Havia os solos e o ritmo contagiant­e, mas as canções não eram sérias o suficiente ou não refletiam a vida de uma forma realística. No folk, as canções são preenchida­s com mais desespero, mais tristeza, mais triunfo, mais fé, com sentimento­s mais profundos”, afirmou o cara.

Gravou o que está nos seis CDs da edição luxo e deu o álbum por encerrado. Chegou a embalar a capa atual e a enviar cópias especiais para a imprensa. Mas não lançou. Entre o Natal e o Ano Novo, entrou duas vezes em estúdio em Minneapoli­s com uma banda local e regravou cinco das músicas. Substitui-as e, aí sim, o disco saiu, em janeiro de 1975.

As músicas refeitas contavam com bateria, piano e novas guitarras. Ficaram bem mais comerciais e, na minha opinião, melhores do que as versões folk que podemos ouvir agora, nos lançamento­s da “Bootleg Series”. As canções regravadas em dezembro foram “Tangled Up in Blue”, “You’re a Big Girl Now”, “Idiot Wind”, “Lily, Rosemary and Jack of the Hearts” e “If You See Her, Say Hello”.

As sobras dessas duas sessões, entretanto, se perderam. Sobraram apenas as versões que estão no “Blood on the Tracks” original — não estão em nenhuma das versões lançadas agora.

Por fim, resta dizer que a volta do artista ao folk —e a um punhado de canções tão festejadas quanto as da época de 1965 e 1966— trouxe uma nova forma de composição. Dylan havia começado a pintar e ele tentou traduzir um pouco dessa arte na música.

“Eu não sabia se podia ser feito”, disse em 1977. “Mas o primeiro álbum em que tentei isso foi ‘Blood on the Tracks’ e todo mundo concordou que soava bem diferente, e a diferença é que havia um novo código nas letras e também não havia sensação de tempo. Havia ontem, hoje e amanhã na mesma sala e havia muito pouco o que se podia imaginar que não poderia acontecer.”

Além de mexer com o tempo, Dylan também brincava com os pronomes. “Tangled Up in Blue”, por exemplo, começa com ele contando a história em primeira pessoa e, em dada estrofe, o “eu” se torna “ele”, volta a ser “eu” e depois “eles”, abarcando também a coprotagon­ista. É como um quadro cubista de Picasso, no qual se vê uma pessoa por todos os lados. Coisa de prêmio Nobel.

Bob Dylan Live – 1962-1966

Artista: Bob Dylan. Gravadora: Columbia/Sony. Quanto: R$ 49,90.

O baú é inesgotáve­l. Há três meses saiu lá fora e aqui um CD duplo ao vivo. Todas as versões de “Bob Dylan Live – 1962-1966” são impecáveis.

É uma ótima porta de entrada para conhecer a obra do sujeito. Ou um grande CD para deixar rolando no carro. Ou num jantar inteligent­i- nho, daqueles que o Luiz Felipe Pondé descreve nas colunas de segunda. Mas pode ser também num jantar burro.

O interessan­te é que se pode definir o espírito da coisa pelos dois CDs. Vamos lá:

No primeiro álbum temos o artista em 1962, 1963 e 1964. Essa é a era do folk, de combate, denúncias, na qual Dylan se mostrou uma antena da América e do mundo. Canções como “Blowin’ in the Wind”, “Masters of War”, “The Times They Are A-Changin’” e “Chimes of Freedom” fizeram dele um cara a ser seguido.

Como ninguém aguenta política 24 horas por dia, Dylan já lança neste lado duas excelentes músicas de desamor (“Don’t Think Twice”, “It’s Allright” e “It Ain’t Me, Babe”) e uma psicodélic­a (“Mr. Tambourine Man”). Esse álbum é só violão e gaita.

No segundo disco, saltamos para 1965 e 1966. As primeiras seis faixas são mais leves, apesar de serem tiradas dos discos posteriore­s, com uma pegada mais rock e menos engajada. As sete restantes são com uma banda de rock. Temos ali “It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)”, “It’s All Over Now, Baby Blue”, “Maggie’s Farm” e “Ballad of a Thin Man”.

Há faltas: “Like a Rolling Stone” na segunda fase e “A Hard Rain’s a Gonna Fall” na primeira. Mas jamais que dois CDs podem cobrir os primeiros quatro anos da carreira de Bob Dylan. Foram sete discos, um deles duplo. Que mudaram a cultura musical.

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Divulgação Bob Dylan em retrato na época da gravação de seu álbum ‘Blood on the Tracks’, em Nova York, em 1974

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