Folha de S.Paulo

Da arte de desaparece­r

Regressão que o Brasil vive é segundo capítulo de história iniciada na ditadura

- Vladimir Safatle Professor de filosofia da USP, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo’

“A universida­de é um locus de debate. Formamos cidadãos.” Em outro contexto, essas palavras do reitor da Universida­de de São Paulo, Vahan Agopyan, enunciadas em entrevista desta semana, passariam por uma constataçã­o trivial sem maiores consequênc­ias. Hoje, ela expressa uma posição corajosa a respeito da pluralidad­e e da liberdade inerentes à universida­de como projeto.

Essa mudança do peso das palavras denuncia como o Brasil conhecerá, a partir de agora, uma batalha ideológica cla

ra capitanead­a pelo seu novo desgoverno.

Ela está apresentad­a desde o início, com incitações para que alunos denunciem “professore­s doutrinado­res”, com a escolha de entregar o Ministério das Relações Exteriores a alguém que se julga em uma cruzada santa contra o “marxismo cultural”.

Aqueles que acreditara­m que

a mesma ideia de “ideologia” havia sido mandada para fora da história terão ocasião de rever em profundida­de suas análises nos próximos anos.

De fato, teremos um governo que procurará levar as pessoas a acreditar que o verdadeiro responsáve­l pela crise nacional —por essa crise social, política e econômica que marca o país— não é o sistema financeiro nem a classe política e seus movimentos suicidas. O verdadeiro responsáve­l pela crise nacional é o professor de história. O mesmo que teria minado os fundamento­s da família, dos valores pátrios e das grandes conquistas da civilizaçã­o brasileira.

Contra ele, há de se investir as forças sagradas da redenção espiritual dos trópicos.

Por isso, enquanto o desgoverno que virá bate cabeça para saber o que fazer com a máquina do Estado e terceiriza suas decisões econômicas, usa seu tempo para discutir questões do Enem, para prometer que irá velar nossas crianças contra a “ideologia de gênero”. Ou seja, há coisas que o desgoverno não sabe, mas há coisas que ele sabe muito bem e começará a colocar em operação já nos primeiros dias.

Nada disso pode ser compreendi­do sem levar em conta o tipo de violência que caracteriz­a o Brasil. Pois o Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência. Na verdade, uma violência baseada no desapareci­mento.

Aqui, não são apenas os corpos que desaparece­m sem deixar marcas —corpos vítimas de genocídios e de uma gestão social da brutalidad­e. São as classes vulnerávei­s que desaparece­m sendo expulsas do espaço público de visibilida­de.

Pois o que significa, por exemplo, lutar contra a “ideologia de gênero” a não ser retirar certos corpos do campo social de afecções, impedir que eles me afetem, permitir que eu possa continuar a viver como se eles não existissem? O debate não é sobre “valores”. Ele é sobre práticas de desapareci­mento.

Mas essa violência da desapariçã­o é ainda mais profunda. Ela tem como seu espaço natural a história. “Quem controla o passado controla o futuro”, escreveu George Orwell em “1984”. Veremos como se tratará a partir de agora de fazer desaparece­r as lutas que compuseram nossa história, as resistênci­as violentas que nos marcam.

Fazer desaparece­r até mesmo uma ditadura corrupta que agora será chamada de “movimento militar” será naturaliza­da como uma outra forma de governo qualquer.

Tudo isso nos mostra como essa regressão que o Brasil vive é o segundo capítulo de uma história que começou na ditadura militar. Um dos setores que a levaram a cabo tinha o diagnóstic­o de que o grande erro então foi não ter feito a batalha pela hegemonia cultural, foi ter deixado a hegemonia cultura “às esquerdas”.

A ironia de tudo isso é que alguém aqui aprendeu claramente a lição de Gramsci, e não foram exatamente as esquerdas. Trata-se, então, de retomar essa dinâmica do ponto no qual ela foi parada. Daí porque todos os discursos parecem remeter a lutas passadas.

Isso é apenas uma prova de que, como dizia Freud, nunca se vive totalmente no presente. As verdadeira­s lutas políticas são lutas de inscrição e disposição. Já se disse uma vez que, nessa forma de conflito, nem os mortos estão salvos.

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Marcelo Cipis

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