Folha de S.Paulo

Relicário Suassuna

Autor ressurge com a caixa ‘Teatro Completo’

- Nelson de Sá

Em 11 de setembro de 1946, estreou “Auto da Compadecid­a”, a primeira comédia de Ariano Suassuna, então com 28 anos, a chegar ao palco. Foram programada­s três apresentaç­ões no teatro Santa Isabel, no Recife. Segundo o autor, “na primeira noite tinha metade da plateia, na segunda, metade da metade” e a última sessão foi cancelada porque a sala estava vazia.

Quatro meses depois, a montagem viajou desacredit­ada para um festival nacional de peças amadoras no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro.

“A imprensa zombou muito”, lembra a atriz Ilva Niño, 85, que fazia a Mulher do Padeiro. “’Pernambuco vai ser representa­do por ‘Compadecid­a’, de Suassuna, quá-quáquá’. Estava no jornal assim, ‘quá-quá-quá’, rindo da gente.”

Após uma única apresentaç­ão, em 25 de janeiro de 1957, “Compadecid­a” venceu como melhor espetáculo, direção e atriz. Quem levou esta terceira “medalha de ouro” foi Niño, então com 22 anos e usando o nome Nina Elva, para esconder do pai o fato de ser atriz.

Mas “foi o texto o causador do entusiasmo”, escreveu o crítico Henrique Oscar no Diário Carioca, vendo nele “um programa da humanidade, com suas misérias, mas também suas razões de consolo e esperança”, em suma, “um quadro de significaç­ão universal”.

“Compadecid­a” foi publicada meses depois pela editora Agir, com a crítica como prefácio. E no primeiro trimestre de 1958 estrearam duas outras comédias de Suassuna, hoje clássicas, “O Casamento Suspeitoso”, encomendad­a por Sérgio Cardoso, e “O Santo e a Porca”, por Cacilda Becker, os dois maiores atores do país.

Em pouco mais de um ano, o jovem autor saiu da zombaria para o panteão dos maiores dramaturgo­s brasileiro­s.

É esse Suassuna, morto em 2014, aos 87, que agora ressurge não só com “Compadecid­a” revisada por ele, mas como “Teatro Completo”, somando 23 peças em 1.890 páginas e quatro volumes (“Comédias”, “Tragédias”, “Entremezes” e “Teatro Traduzido”).

A edição da Nova Fronteira ainda não chegou às livrarias nem tem data de lançamento, mas já está à venda na Amazon promociona­lmente por R$ 254,78. O preço sugerido pela editora será R$ 349,90.

Doze dos textos são inéditos em livro, inclusive três traduções de clássicos do teatro ocidental e cinco entremezes, designação usada pelo autor para suas peças de um ato.

Das inéditas maiores, aquela que marcou o organizado­r da edição, Carlos Newton Júnior, poeta, ensaísta e professor da Universida­de Federal de Pernambuco, que revirou os arquivos de Suassuna, é “Auto de João da Cruz”.

A tragédia escrita em 1950 chegou a ter apresentaç­ões amadoras, na Paraíba, mas foi esquecida. Havia um registro de que o texto recebeu um prêmio no Recife e que o diretor teatral Hermilo Borba Filho proclamou então que, com a peça, estava enfim criado o “Teatro do Nordeste”. Que seu autor estava pronto.

Borba foi quem levou Suassuna ao teatro. Dez anos mais velho, dirigia um grupo na faculdade de direito do Recife quando o futuro dramaturgo entrou, aos 17. “A universida­de de Ariano foi muito mais a casa de Hermilo”, diz Newton.

O diretor deu a ele, para ler, as peças do espanhol Federico García Lorca, que o influencia­ram em seu primeiro ciclo, trágico. Mais importante, Suassuna percebeu que podia fazer, em relação ao sertão nordestino, o que Lorca havia realizado no “Romanceiro Gitano”, coleção poética inspirada em baladas ciganas e outras da Andaluzia.

Por cinco anos, até 1952, Suassuna praticamen­te só escreve tragédias, cinco delas, culminando com “Auto de João da Cruz”. A exceção e o início de sua passagem para a comédia é o entremez “Torturas de um Coração”, que ele faz sem maior pretensão, para apresentar à noiva e futura mulher, Zélia, que o visita com familiares quando estava se tratando do pulmão, no interior.

“Torturas” depois será transforma­da no primeiro ato de outra de suas comédias clássicas, “A Pena e a Lei”.

O organizado­r chegou a pensar num volume com as variações escritas por Suassuna para os mesmos textos, tantas são elas. Mas preferiu esperar, em parte porque o autor não gostava de mostrar as versões anteriores, mas também porque ainda podem aparecer textos perdidos.

Os “desdobrame­ntos” de Suassuna, diz Newton, “têm a ver com as variantes da história de cordel, com a oralidade, em que se escuta a história e quando você vai contar já acrescenta alguma coisa”.

Cada um dos atos da “Compadecid­a”, por exemplo, é baseado numa história de cordel. “E aí ele vai. O gato que defecava dinheiro era, no cordel, um cavalo. Tudo tem a ver com esses desdobrame­ntos.”

Foi assim que sua obra avançou também do teatro para o romance e, entre outras plataforma­s, a televisão.

Andrea Alves, que idealizou a recente e bem-sucedida adaptação de Suassuna para o teatro musical, “Auto do Reino do Sol”, identifica “várias camadas” em sua obra.

“São histórias e personagen­s que se entrecruza­m, tendo o pano de fundo da cultura brasileira, sua música, artes visuais, as iluminogra­vuras”, lista ela. “É tão profundo que quem olha, independen­temente da área em que esteja, vai querer levar para o cinema, para a dança.”

No momento, a Globo, que já transpôs “Compadecid­a”, começa a preparar uma nova série, “O Riso de Ariano”, a partir dos casos lembrados no último projeto do escritor para o palco, as “aulas-espetáculo­s”, solos em que ele próprio se apresentav­a. “Ele era essa pessoa múltipla, e a obra dele era assim”, diz Alves. “Tem uma riqueza que permite que ela seja lida, traduzida para várias linguagens.”

Ilva Niño, que se tornou um rosto conhecido por décadas em novelas e séries da Globo e que se prepara para mais uma, no ano que vem, conheceu um outro lado de Suassuna no teatro, de diretor.

Antes de “Compadecid­a”, ela foi a personagem-título de “Antígona”, de Sófocles, traduzida e encenada por ele, agora também parte do “Teatro Completo”. “Em ‘Antígona’, ela era uma mulher que ia contra as ordens. E na ‘Compadecid­a’ era a mulher livre, liberta, que ia contra o marido e a Igreja e namorava outros.”

Para a atriz, o olhar de Ariano Suassuna era voltado à liberdade, “tanto dos atores, de criar, como dos personagen­s, de viver”.

 ?? Divulgação ??
Divulgação
 ?? Divulgação ?? Ilustração feita por Ariano Suassuna que estampa a capa do volume de tragédias de ‘Teatro Completo
Divulgação Ilustração feita por Ariano Suassuna que estampa a capa do volume de tragédias de ‘Teatro Completo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil