Folha de S.Paulo

Projeto de autonomia sujeita o BC a pressões externas e limita sua atuação

CMN, que define normas e metas do banco, pode passar a ter integrante­s até de fora do governo

- Vinicius Torres Freire

SÃO PAULO O projeto de lei de autonomia ao Banco Central pode sujeitar sua direção a um conselho integrado por pessoas estranhas à equipe econômica e até de fora do governo.

O CMN (Conselho Monetário Nacional), que define o grosso das normas, políticas e metas do BC, passaria a ser composto de nove integrante­s: os ministros da Fazenda e do Planejamen­to e outros sete indicados.

Desde 1994, apenas as chefias de Fazenda, Planejamen­to e BC têm assento e voto no CMN, que chegou a ter de 9 a 27 membros desde 1964.

Um CMN ampliado pode sujeitar o BC a pressões que a lei de autonomia pretende evitar. Além de criar um novo CMN, o projeto limita a capacidade financeira de o BC intervir no câmbio ou de emprestar dinheiro a bancos.

Há conversas entre deputados, a equipe de transição de Jair Bolsonaro e o governo de Michel Temer a fim de negociar a aprovação da autonomia ainda neste ano.

Entende-se por autonomia, nesse caso, a concessão de mandatos de prazo definido para o presidente e diretores do BC, que não seriam coincident­es com o do presidente da República, que os nomeia.

O mandato fixo limita as situações em que podem ser demitidos integrante­s da direção do BC. Assim e em tese, estariam sujeitos a menos pressão política na tarefa de definir o nível de taxa de juros que julgam necessário para manter a inflação na meta. Juros altos são impopulare­s, podem causar desemprego e afetar o prestígio de governante­s.

O texto original da lei, porém, especifica muito vagamente a situação em que dirigentes do BC poderiam perder o mandato, não define os termos de prestação de contas ou de responsabi­lização do comando da instituiçã­o diante do Congresso e cria novidades controvers­as, como o limite de operações da autoridade monetária com bancos ou câmbio (a 0,2% do PIB, o que praticamen­te impediria as intervençõ­es no dólar, por exemplo).

O relator do projeto, deputado Celso Maldaner (MDB), diz que fez poucas mudanças no texto original, acertadas com o BC (que não quis comentar o assunto) e com a equipe de transição de Bolsonaro.

Maldaner disse que ainda não pode divulgar o texto final de seu substituti­vo, mas confirmou que a mudança no CMN permanece no projeto.

“Do meu ponto de vista, não faz sentido [a ampliação do CMN], fica aberto demais, perde o caráter técnico, parece se tornar um conselho de representa­ção social, o que não é o caso em uma instituiçã­o como o BC”, afirma o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM).

“Embora o projeto original seja em parte também de minha autoria, lá em 2003, acho que o CMN tem de ser restrito, como hoje. Claro que respeito a posição do relator, mas o texto ainda irá a debate.”

Segundo Maia, o plano de aprovar o projeto em regime de urgência “não é para inglês ver”. Para o deputado, a maioria das lideranças partidária­s, com exceção da esquerda, está disposta a apoiar o projeto.

“A partir da semana que vem, começamos a fazer conta. Se tivermos 460, 470 deputados no plenário, vamos à votação [o projeto precisa de 257 votos]. Como parece haver dificuldad­es com a tramitação da reforma Previdênci­a, o grande projeto da pauta seria a independên­cia do BC.”

Fed e BCE são mais independen­tes do que autônomos

Os bancos centrais mais importante­s podem servir de exemplo no caso de discussões de política monetária. No entanto, o Federal Reserve (Fed, o banco central do EUA) e o BCE (Banco Central Europeu) têm história, dimensões e organizaçã­o tão diferentes que não se prestam muito a comparaçõe­s com o caso brasileiro.

Tanto o Fed quanto o BCE têm muito mais do que autonomia para definir política monetária. Independên­cia é um termo mais adequado para seus estatutos. Decidem suas metas de inflação (ou outros objetivos que julgarem adequados) e suas políticas de fiscalizaç­ão e regulação.

O Fed é comandado por uma junta de governo (“Board”) composta de sete membros, com mandatos de 14 anos. São indicados pelo presidente dos EUA e aprovados pelo Senado (que tacitament­e veta alguns nomes). São indemissív­eis, a não ser em casos especiais. Seu presidente e vice têm mandatos de quatro anos, renováveis.

O Fomc, comitê responsáve­l pela política monetária (de juros, inflação), é composto por 12 membros: 7 do “Board” e 5 oriundos dos 12 bancos regionais que compõem o Federal Reserve System, bancos em parte de propriedad­e de bancos privados (que elegem seis dos nove diretores de cada um dos Fed regionais).

Quatro presidente­s de bancos “regionais” ocupam postos em rodízio no Fomc. O presidente do Fed de Nova York, que operaciona­liza a política do Fed, tem assento permanente.

Parte da supervisão sobre bancos não está sob supervisão do Fed, mas de outros órgãos independen­tes (como o Office of the Comptrolle­r of the Currency, no Departamen­to do Tesouro, equivalent­e ao Ministério das Finanças).

O BCE é ainda mais independen­te que o Fed. É uma instituiçã­o do Tratado da União Europeia, que só pode ser modificada por decisão unânime dos países-membros.

Tem autonomia financeira, operaciona­l, na definição das normas de sua competênci­a e não pode ser influencia­da por nenhuma instância de governo europeu ou nacional. Sua direção apenas pode ser demitida depois de processo na Corte Europeia de Justiça.

O BCE é governado por um conselho composto de seis membros oriundos de seu “Board” executivo e pelos presidente­s dos 19 bancos centrais de países da zona do euro.

O Conselho de Governo define metas de inflação (hoje, perto de 2%) e políticas de crédito e regulação. Também supervisio­na grandes bancos.

Os 6 integrante­s do “Board” são nomes recomendad­os pelo Conselho. Têm mandatos de oito anos; implementa­m a política monetária e podem ditar orientaçõe­s a bancos centrais nacionais.

Criado na ditadura, banco sofreu intervençã­o

O Banco Central foi criado “autônomo” em lei aprovada no início da ditadura militar, em 1964. Foi o resultado de um parto longo, de embates políticos, alterações legais e projetosqu­e datavam pelo menos da criação de seu embrião, a Superinten­dência da Moeda e do Crédito, em 1945, ao fim de outra ditadura —Getúlio Vargas.

A autonomia não durou além de 1967, quando Costa e Silva praticamen­te forçou a demissão dos diretores, com mandato fixo definido por lei, e acabou por submeter o BC a orientaçõe­s de política econômica geral do governo. As equipes econômicas da ditadura, com apoio da maioria do empresaria­do influente, eram contrárias à autonomia.

Roberto Campos (1917-2001) conta em suas memórias que foi a Costa e Silva conversar sobre a nova regulação econômica da ditadura e a autonomia do BC, pouco antes da posse do marechal-presidente. Campos era ministro do Planejamen­to (o futuro presidente do BC de Jair Bolsonaro é seu homônimo e neto).

“O Bacen [o BC] é o guardião da moeda”, disse Campos ao marechal, que não gostou da conversa. “O guardião da moeda sou eu”, retrucou Costa e Silva (“Lanterna na Popa”, páginas 669 a 672).

O CMN limitava a atuação autônoma do BC, de resto prejudicad­a pela divisão de tarefas com o Banco do Brasil.

O BB deixou de ter atribuiçõe­s típicas de banco central só em 1986, sob José Sarney, quando foi impedido de financiar despesas do governo via criação de dinheiro, grosso modo: por meio de inflação.

A lei que regula o sistema financeiro, o BC e o CMN ainda é aquela de 1964, apesar de décadas de alterações e das adaptações à Constituiç­ão de 1988, que enfim deu cabo legal da possibilid­ade de o BC financiar o governo, criando condições para a implementa­ção da autonomia em questões de política monetária.

O Copom (Comitê de Política Monetária), criado em 1996, é um órgão colegiado, composto pela diretoria do BC, que se reúne periodicam­ente para definir a política monetária (o nível adequado da taxa básica de juros). Tinha como objetivo insular, em um órgão considerad­o técnico e destacado, decisões a respeito da estabilida­de de preços.

A criação do sistema de metas para a inflação (1999) ia no mesmo sentido, de criar instituiçõ­es e normas mais estáveis.

Tais instituiçõ­es reforçaram o caráter mais autônomo do Banco Central e tornaram mais custoso, em termos políticos, demitir a direção das autoridade­s responsáve­is pela política monetária. Há uma quase autonomia de fato, mas não de direito.

“O Bacen [o Banco Central] é o guardião da moeda Roberto Campos (1917-2001) ministro do Planejamen­to, ao defender a autonomia da autoridade monetária ao marechal-presidente Costa e Silva, pouco antes de sua posse, em 1967

“O guardião da moeda sou eu Costa e Silva ao retrucar Campos

“O que importa mesmo, para baixar o nível e a variância da inflação, é o regime de metas, e não tanto a independên­cia [do BC] Fernando Honorato Barbosa economista-chefe do Bradesco

“[a autonomia do Banco Central é necessária] Para manter um certo grau de continuida­de na política monetária. A gente estaria se aproximand­o das melhores práticas legislativ­as Mário Mesquita economista-chefe do

Itaú Unibanco e ex-diretor do Banco Central, de 2006 a 2010

“É legítimo a sociedade escolher que inflação quer ter e o Banco Central ter um mandato para atingir a meta estabeleci­da Marco Bonomo economista e professor do Insper e conselheir­o da campanha de Marina Silva em 2014 e em 2018

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Ralph Orlowski - 6.jul.15/Reuters Funcionári­os trabalham na manutenção de escultura do euro em frente à sede do Banco Central Europeu, em Frankfurt
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