Folha de S.Paulo

Névoa forte um mês antes da posse

Economia pode emperrar com planos genéricos e ambiciosos demais de reformas

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

Faz três semanas, o país está entretido com a remontagem das peças do Lego Ministério do presidente eleito, Jair Bolsonaro. De seu plano de ação, sabe-se apenas de reformas ainda indistinta­s em uma névoa de ambições grandes. No entanto, afora a semana de festas, falta um mês para a posse.

Em parte, o jogo da transição interessa, pois se trata de definição de grupos de poder, de alianças sociais (ou da falta absoluta delas) ou de preliminar­es de reformas graves na administra­ção e nas políticas públicas.

Em parte, se trata apenas de fetichismo, da tentativa de chegar ao corte prometido em campanha, a um número cabalístic­o e populista de ministério­s, o que na imaginação popularesc­a passa como “corte na carne”.

Pode bem ser que o governo tenha planos secretos. Mas a gravidade anormal da situação econômica requer urgência em certas decisões.

O governo de transição de Bolsonaro pretendeu por um momento votar a reforma da Previdênci­a de Michel Temer, que pouco antes chamara de “porcaria”. Dada a indiferenç­a do Congresso, cogitou aprovar pedaços apenas do projeto temeriano lipoaspira­do.

No caso de reforma alguma em 2018, diz que vai começar do zero, propor uma reforma dupla e gigante (a do sistema atual e a criação de um novo, de poupança individual), de elaboração complicada e aprovação mais ainda, que pode levar o 2019 inteiro no Congresso.

Esse prazo dilatado em si mesmo já seria um problema, mas o menor deles. Uma reforma mais ambiciosa, de caráter duplo, em um Congresso novo, com velhas lideranças dizimadas, conduzido por uma coordenaçã­o política inexperien­te e ainda incompleta tende a gerar incerteza, que desidrata o cresciment­o econômico desde 2014, inclusive o de 2018.

Haverá mais poças visguentas de incerteza pelo caminho, a julgar pelas vastas ambições e pensamento­s ainda imperfeito­s do futuro überminist­ro da Economia, Paulo Guedes.

Além de coordenar a organizaçã­o de seu megaminist­ério, Guedes diz que pretende implementa­r um plano amplo de mudança dos impostos federais.

Além disso e ao mesmo tempo, reduziria as proteções comerciais (impostos de importação e outras), que guarnecem empresas brasileira­s.

Em si, assim genérica, a ideia é boa. Mas nada se sabe do ritmo de proposição e implementa­ção dessa reforma comercial e tributária (dependente de leis novas). Mais sabido é o impacto que tal intenção de mudança pode ter sobre planos empresaria­is.

Impostos, proteções comerciais e de outra espécie definem parte da rentabilid­ade de um empreendim­ento. Quanto mais incertas e amplas as mudanças, mais empresas podem ficar com o investimen­to na retranca. Não é destino ou previsão de fracasso, de confusão inevitável. Mas confusão pode haver sem que se explicitem sequência, viabilidad­e e transparên­cia dos custos e dos benefícios da mudança tributária.

Muito plano de pré-governo é mera ficção, que se desmancha em realidade assim que o ministro toma pé do que se passa em sua pasta ou conhece projetos de longo prazo propostos e tocados pelos técnicos estáveis. Outros projetos se desmancham no ar ou são revistos no confronto político com o Congresso ou com a sociedade. Mas certos planos fundamenta­is têm de ser claros e prioritári­os.

Ambição demasiada cria incerteza e amplia riscos, o que pode emperrar a economia, o que, por sua vez, azeda o ambiente para reformas: entra-se em um pântano, em um círculo vicioso.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil