Folha de S.Paulo

Déficit habitacion­al e população de rua crescentes desafiam nova gestão

Sem propostas claras para a área, Jair Bolsonaro fala em tipificar invasões de áreas como terrorismo

- Marina Estarque

SÃO PAULO O governo do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), terá que enfrentar um déficit habitacion­al crescente, agravado pela crise econômica, além de uma expansão da população de rua e das ocupações em grandes cidades.

Apesar da gravidade da situação, o plano de governo de Bolsonaro não tem propostas para a área. Durante a campanha, o então candidato falou pouco sobre habitação, mas gravou vídeo em que se comprometi­a a manter o Minha Casa Minha Vida e reduzir taxas do programa.

Em 2017, o déficit habitacion­al no país atingiu o maior nível dos últimos dez anos, segundo pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV) e da Associação Brasileira de Incorporad­oras Imobiliári­as.

O número de unidades necessária­s para suprir a demanda habitacion­al no país chegou a 7,77 milhões. Em 2007, era de 7,26 milhões.

O componente que mais pesou no aumento do déficit foi o ônus excessivo do aluguel —quando uma família ganha até três salários mínimos e gasta mais do que 30% da renda com moradia.

Nesses casos, a alta despesa com o aluguel compromete necessidad­es básicas da família, como alimentaçã­o e educação. “É um desafio habitacion­al enorme”, diz a economista e coordenado­ra de projetos da FGV, Ana Maria Castelo.

Mesmo com o programa Minha Casa Minha Vida, iniciado em 2009, o ônus excessivo do aluguel aumentou 70% no período, atingindo 3,3 milhões de domicílios brasileiro­s em 2017, o equivalent­e a 42% do total do déficit.

“Teve um salto em 2014 e 2015, associado à deterioraç­ão da economia, da renda e do emprego”, afirma Castelo.

O ônus excessivo do aluguel é um problema típico das cidades, onde os terrenos e imóveis são caros. “As famílias pagam um aluguel alto para morar perto do trabalho”, diz.

O modelo do Minha Casa Minha Vida dificulta a criação de novas unidades nesses centros. Para lucrar mais, as empreiteir­as preferem construir em terrenos mais baratos e, portanto, na periferia das cidades atendidas. Por isso, afirmam especialis­tas, o programa teve menor impacto nesse aspecto do déficit.

Há um consenso de que, para reduzir o ônus do aluguel, não necessaria­mente é preciso investir na produção de unidades. Políticas de renda, descentral­ização da oferta de emprego e planos de mobilidade são apontadas como caminhos possíveis.

Até políticas de segurança jurídica e informação de crédito, como o cadastro positivo, podem baratear o aluguel ao substituir o seguro e o fiador.

Apesar de não ter segurado o ônus do aluguel, de acordo com Castelo, o Minha Casa Minha Vida teve um efeito na redução de outros componente­s do déficit habitacion­al, como a habitação precária, que teve queda de 11% entre 2009 e 2017. Atualmente, representa 12% do déficit ou 967.270 unidades.

Considerad­o um dos problemas mais urgentes, a habitação precária é um risco para a vida dos moradores e também para saúde pública. É quase unanimidad­e que as políticas de moradia precisam focar nesse público socialment­e mais vulnerável.

“O déficit total não deve ser entendido como necessidad­e de intervençã­o estatal urgente. A prioridade tem que ser esses 900 mil que moram em casa de papelão, barracos. São pessoas que não têm renda, FGTS. Muitas nem têm documento”, diz a economista Luiza Petroll Rodrigues, especialis­ta em crédito habitacion­al.

Para essa população, a casa precisa ser praticamen­te doada, o que requer um subsídio público maior. “É muito mais caro financiar 900 mil casas para esse público do que 1,8 milhão para classe média baixa.”

Uma das principais críticas ao programa Minha Casa Minha Vida é a falta de foco na faixa 1 (famílias com renda até R$ 1.800 e imóveis com subsídio de até 90%).

O programa entregou pouco mais de 4 milhões de unidades desde o início, em 2009, até agosto de 2018, de acordo com o Ministério das Cidades. Apenas 1,38 milhão, entretanto, foram para a faixa 1, ou seja, cerca de 34% do total.

A situação se agravou nos últimos anos. As contrataçõ­es para essa faixa caíram de 537.185 em 2013, quando atingiu seu ápice, para 16.890 em 2015, 36.858 em 2016 e 22.222 em 2017. Até setembro de 2018, foram 75.844.

Somadas, as famílias que ganham até três salários mínimos correspond­em a 92% do déficit habitacion­al.

Petroll defende que o governo elimine as faixas 2 e 3, para concentrar os recursos na faixa 1. Já para o professor da Faculdade de Arquitetur­a e Urbanismo (FAU) da USP Nabil Bonduki, ex-vereador pelo PT, eliminar as faixas superiores poderia gerar um efeito inflacioná­rio no preço do aluguel. “É preciso manter a produção, mas privilegia­r a faixa 1”, diz.

Outra crítica importante ao programa é que ele construiu conjuntos habitacion­ais distantes dos grandes centros, em locais com pouco acesso a emprego, serviços e equipament­os públicos. Entretanto, a maioria dos especialis­tas concorda que o Minha Casa Minha Vida precisa continuar.

“É um caso de sucesso, que acumulou experiênci­as positivas. E é o único programa que tem escala. Mas precisa ser aprimorado”, afirma Petroll.

Para a professora da FAUUSP Raquel Rolnik, que foi relatora especial da ONU para o direito à moradia, o programa não é o melhor modelo para atender os mais vulnerávei­s.

“Em uma situação de extrema pobreza, a pessoa não tem condições de arcar com os custos de uma casa própria, como contas e condomínio”, diz ela, que recomenda a locação social para esses casos.

Diferente do auxílio aluguel, em que a pessoa recebe o valor e busca moradia, nesse modelo imóveis específico­s são disponibil­izados pelo poder público para locação subsidiada.

A moradora da favela da Tribo, na zona norte de São Paulo, Tatiane da Silva, 25, tem opinião parecida sobre o Minha Casa Minha Vida: “É coisa de rico”, afirma. O seu barraco, em um vale cheio de barro e esgoto, parece uma colcha de retalhos mal costurada: as paredes são folhas finas de madeira, portas velhas e telhas de zinco sobreposta­s.

Antes de perder o emprego, Tatiane morava com os filhos na Brasilândi­a, também na zona norte. “Não consegui pagar o aluguel, de R$ 500. Era uma casinha de azulejo, de bloco”, afirma ela, que vive há um ano em uma favela, no Jardim Damasceno.

Separada do marido, Tatiane sustenta os três filhos pequenos sozinha, com bicos de faxineira. A do meio, de 1 ano e 5 meses, tem asma e bronquite. “Nessa casa ela fica muito mais doente. Mas eu tento agasalhar bem as crianças”, lamenta ela, com Mateus, de dois meses, no colo.

Cerca de 1.300 famílias vivem na comunidade, muitas delas em barracos improvisad­os como o de Tatiane. De acordo com a líder comunitári­a Irani Guedes, 45, as casas são invadidas por serpentes e escorpiões, e o local tem alto risco de deslizamen­to.

Em julho, um incêndio na favela matou quatro pessoas. “Tenho medo, porque, se pegar fogo, como eu vou conseguir correr sozinha com três crianças?”, diz Tatiane.

Segundo Irani, o terreno é uma propriedad­e particular. “A gente quer pagar pela terra, legalizar”, diz.

De acordo com especialis­tas do setor, a redução do déficit habitacion­al passa também por políticas de regulariza­ção fundiária.

Assim como Tatiane, o desemprego e o aumento dos aluguéis empurraram milhares de pessoas para moradias precárias ou ocupações. Em São Paulo, por exemplo, o número de prédios invadidos na região central saltou de 42, em 2013, para 70 em 2018, segundo estimativa da prefeitura.

Em seu plano de governo, Bolsonaro propõe tipificar como terrorismo as invasões urbanas e rurais. “Essas pessoas estão desesperad­as, sem nenhum acesso a moradia. O que ele chama de terrorismo é apenas expressão do déficit habitacion­al”, diz Rolnik.

Procurado pela reportagem, o presidente eleito não respondeu aos questionam­entos.

Além das ocupações, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que haja mais de 101 mil moradores de rua no país. Outro estudo, feito em 2007 pelo Ministério do Desenvolvi­mento Social, apontava que havia cerca de 50 mil.

Para lidar com essa demanda, especialis­tas recomendam combinar estratégia­s. De acordo com eles, um programa, como o Minha Casa Minha Vida, precisa ser complement­ado com parcerias público-privadas, locação social, urbanizaçã­o de favelas e reforma de imóveis vazios.

Havia, em 2015, 7,9 milhões de domicílios vagos no país, segundo pesquisa da Fundação João Pinheiro. Cerca de 20% deles, na área rural.

Para especialis­tas, a ocupação desses imóveis não solucionar­ia o déficit. Muitos estão inabitávei­s e em locais sem demanda , como cidades que perderam população.

O mapeamento e reforma dessas unidades podem sair mais caros do que a construção de imóveis novos. E a escala seria menor do que programas como o Minha Casa Minha Vida. “Tem que fazer um projeto de reabilitaç­ão para cada edifício, uma licitação específica, é um trabalho hercúleo”, diz Bonduki.

Ainda assim, o uso dessas unidades é viável e necessário, avaliam especialis­tas. “Esses prédios ocupam lugares privilegia­dos, e é dever do poder público evitar esses esqueletos, que geram abandono e deterioraç­ão urbana”, diz.

Durante a campanha, Bolsonaro afirmou que vai extinguir o Ministério das Cidades, declaração considerad­a alarmante por especialis­tas. Em entrevista em agosto, o então candidato disse que enviaria os recursos de habitação diretament­e para municípios: “E lá o prefeito vai usar essa verba no que achar melhor”.

A pasta tem a função de elaborar e financiar políticas nacionais de habitação, mobilidade e saneamento nas cidades. Sem o ministério, o temor é que essa coordenaçã­o deixe de existir.

De acordo com o presidente do Conselho de Arquitetur­a e Urbanismo do Brasil, Luciano Guimarães, a maioria dos municípios não tem condições técnicas de realizar um planejamen­to urbano. “Somos um dos países mais urbanizado­s do mundo, precisamos do Ministério das Cidades.”

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Marlene Bergamo/Folhapress Tatiane da Silva, 25, desemprega­da, e seu filho, Mateus, na favela da Tribo, na zona norte de SP
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Fotos Marlene Bergamo/Folhapress Homem passa em viela com barraco na favela da Tribo, na zona norte de São Paulo
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Os irmãos Edson Oliveira, 27, e Jail Nascimento, 25, ambos desemprega­dos, moram em barraco na favela

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