Passeio mapeia os lugares da história negra em São Paulo
Do Largo da Memória ao Paissandu, grupo apresenta locais da cidade marcados pela história de resistência
SÃO PAULO Quem caminha nos arredores da rua da Glória, na Liberdade, centro de São Paulo, enfeitada com postes que lembram lanternas orientais, não imagina que está pisando sobre o que foi um cemitério para pobres, negros, indigentes e condenados à forca.
A maioria das pessoas que descem apressadas na estação Anhangabaú de metrô, pela Ladeira da Memória, desconhece que ali ficava o mercado onde se leiloavam escravos até o século 19.
O mesmo para quem anda no entorno da Sé ou do largo São Francisco, onde fica a Faculdade de Direito da USP. Conforme a cidade se modernizava, a história do povo negro foi sendo escondida.
Quando criança, Raissa Albano de Oliveira, 25, negra e paulistana, nunca ouvira sobre estes lugares. Na faculdade, ela começou a questionar onde estavam os negros na narrativa oficial da cidade.
Assim nasceu o Cartografia Negra, projeto que mapeia pontos históricos do povo negro na capital. “Quis contar a história não contada, essa história dos vencidos. Isso surgiu das minhas dúvidas pessoais, quanto a uma parte da história da minha família, da minha herança negra”, diz.
No meio do ano, Raissa se juntou a dois amigos e criou a Volta Negra, caminhada pelo centro que revisita locais.
O passeio é gratuito, uma vez por mês, com pessoas que manifestam interesse no Facebook. O próximo será no sá- bado (24), quatro dias depois do Dia da Consciência Negra.
Sem placas, com nomes trocados, a maioria dos eventos e pessoas ligadas a essas histórias foram esquecidas.
É o caso do chafariz de pedra do Largo da Misericórdia, projetado e construído pelo engenheiro negro Joaquim Pinto de Oliveira Tebas, em 1792. A população negra ia até ali para buscar água. Alguns discutiam maneiras de resistir à escravidão, segundo o grupo. No século 19, ele foi transferido para Santa Cecília.
“Tem pontos que foram de resistência, onde houve manifestação cultural, onde a população negra morou de fato, antes de ir sendo expulsa do centro, e outros foram pontos de tortura”, explica a jornalista Carolina Piai, 24, integrante do Cartografia Negra.
“No período pós-abolição, a ideia era modernizar São Paulo, para isso era importante apagar esse histórico, que não era uma história moderna, positiva”, afirma.
Na região da Sé, marco-zero da cidade, funcionava uma espécie de complexo penal da São Paulo antiga. Até 1865, o largo Sete de Setembro era conhecido como largo do Pelourinho, onde escravos eram castigados. Por ali ficavam a cadeia, a forca e o quartel.
Na rua dos Aflitos fica a capela onde o cabo da Marinha Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, passou a última noite antes de morrer na forca, em 1821. Condenado por participar de um levante reivindicando salários ao Império, resistiu a duas tentativas fracassadas de execução, e virou santo popular.
A pesquisa do grupo percorreu acervo de arquivos públicos, teses e dissertações de universidades, livros e o site Dicionário de Ruas, da prefeitura. Sempre esbarrando na dificuldade de encontrar documentos oficiais. No caso do Pelourinho, encontraram o registro em um mapa que mostrava a cidade de 1800 a 1874.
A ideia agora é levar o projeto para as escolas, especialmente as da rede pública. “É uma oportunidade de conscientizar as pessoas de que houve luta, de que houve tortura, de que esses lugares foram reconfigurados para apagar essa história e fingir que não foi tão ruim assim”, diz Raissa.