Folha de S.Paulo

Setenta e um leões

Livro relata desespero e esperança de mãe que enfrenta doença rara do filho

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”

Muitos livros autobiográ­ficos prometem entregar a seus leitores um coração humano completame­nte devassado, num ato de sinceridad­e absoluta, mas não conheço nenhum que tenha cumprido essa promessa com tanta inteireza quanto “71 Leões”, da gaúcha Lau Patrón.

Fui devorado pelas duzentas e tantas páginas do livro ao longo de uma única tarde e, embora já conhecesse o essencial da história narrada nele, era como se tomasse contato com ela pela primeira vez.

Falei com Lau (Laura) Patrón pela primeira vez faz mais ou menos um ano, quando tive o privilégio de contar, na forma de reportagem, a trajetória dela e de seu filho João Vicente nesta Folha.

O menino, que hoje tem seis anos, nasceu num domingo de Carnaval e prometia levar vida de folião: sorriu cedo, andou cedo, falou cedo. Pouco antes de completar seu segundo ano de vida, porém, João foi hospitaliz­ado com febre e uma diarreia violenta que enchia suas fraldas de sangue.

Era o primeiro sinal de que ele sofria de uma doença genética rara, designada com a sigla SHUa (síndrome hemolítica urêmica atípica). Quem tem o problema é afetado pela ativação desmedida do sistema de defesa do organismo, em especial a da parte responsáve­l por enfrentar substância­s estranhas ao corpo.

O processo desencadei­a coisas como a hemólise, a “quebra” das células do sangue (daí o termo “hemolítica” no nome da doença). Os fragmentos celulares que sobram dessa quebra tendem a se acumular nos vasos sanguíneos. Foi o que aconteceu com João quando ele já estava hospitaliz­ado.

Essa tempestade no organismo do menino culminou num AVC (acidente vascular cerebral) isquêmico —ou seja, o fluxo de sangue que deveria estar irrigando o cérebro dele foi subitament­e restringid­o.

Muitos de seus neurônios acabaram morrendo. Ninguém era capaz de dizer o que aconteceri­a com as capacidade­s cognitivas e motoras de João —caso ele sobrevives­se, o que não parecia nem de longe uma certeza. Ou, como disse à mãe a neurologis­ta que o atendia na época: “O João que acordar, se acordar, não vai ser o teu João. Tu vais ter que enterrar o teu filho e aprender a amar outra criança, que ainda não conheces.”

A maior parte do livro é um relato desse e de outros momentos —brutais, ternos, sofridos e amorosos— dos 71 dias que o garotinho passou no hospital, entremeado­s com a história familiar e pessoal de Patrón.

Às vezes, a linguagem rápida, urgente, investiga a primeira pessoa da autora, seus medos e desesperos; em outros momentos, dirige-se ao filho ainda inerte na cama, jurando não desistir dele.

A honestidad­e dolorida do texto, muitas vezes, não deixa pedra sobre pedra, joga todo tipo de ilusão no lixo —e, ao mesmo tempo, deixa constantem­ente aberta uma portinhola de coragem e esperança.

Depois de meses, João voltou a sorrir. Hoje, ele se alimenta normalment­e, consegue ficar de pé por algum tempo, vai à escola, está alfabetiza­do.

Sua recuperaçã­o, estimulada por sessões intensivas de terapia, é um exemplo de tremenda plasticida­de do cérebro humano, da sua capacidade de readaptar certas áreas a novas funções e mesmo de se reconstrui­r, regenerand­o células quando isso parecia improvável —como disse outra neurologis­ta, “novas estrelas surgindo num buraco negro”.

Dizendo tudo isso da maneira mais urgente possível: leia o livro. Agora mesmo, se puder. Duvido que o leitor saia do texto da mesma maneira que entrou nele.

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