Folha de S.Paulo

A Geni virtual

Culpa pela onda de desinforma­ção não é apenas da internet

- Por Ricardo Abramovay Ilustração Bruno Maron Quadrinist­a e ilustrador

[resumo] Ambientes virtuais onde se espalham mentiras não representa­m ameaça à democracia, de acordo com autor, que analisa estudo sobre como a influência da TV e a formação de uma identidade conservado­ra impermeáve­l a fontes de informação diversific­adas têm papel definitivo na atual epidemia de desinforma­ção

A ascensão da extrema direita em várias partes do mundo lançou a internet num ameaçador território distópico. O otimismo em torno de sua vocação democratiz­ante e descentral­izadora esvaneceu, até para seus mais vigorosos apologista­s.

Nicholas Thompson, comemorand­o os 25 anos da revista Wired (a mais importante publicação sobre tecnologia em todo o mundo) afirma, logo ao início da imperdível conversa que manteve com Yuval Noah Harari e Tristan Harris: “Quando a revista foi fundada, ela tinha a marca do otimismo, da mudança e pautava-se na ideia de que tecnologia é uma coisa boa e mudança é uma coisa boa. Vinte e cinco anos depois, olhando como o mundo está, não dá mais para manter integralme­nte aquela filosofia”.

A internet pede desculpas: este é o título de um conjunto de entrevista­s que a revista norte-americana Intelligen­cer fez com figuras importante­s do Vale do Silício, como Jaron Lanier (cujo último livro propõe que as pessoas abandonem todas as redes sociais), Guillaume Chaslot (que ajudou a desenvolve­r o algoritmo de recomendaç­ões do YouTube e que hoje denuncia seus efeitos nefastos) e Roger McNamee (investidor que foi conselheir­o de Mark Zuckerberg e é atualmente um de seus mais implacávei­s críticos), entre outros.

Acumulam-se artigos científico­s e imensa quantidade de livros nos últimos dois ou três anos denunciand­o o modelo de negócios dos gigantes digitais contemporâ­neos por estar conduzindo o bem público que é a internet a um caminho oposto ao concebido por seus criadores.

Yochai Benkler, Robert Faris e Hal Roberts (os três do Berkman Klein Center para Internet e Sociedade da Universida­de Harvard) acabam de publicar “Network Propaganda” (propaganda em rede, Oxford University Press). No livro, mesmo reconhecen­do as ameaças do modelo de negócios dos gigantes digitais à vida cívica contemporâ­nea, os autores mostram que as mídias sociais não podem ser considerad­as como os vetores fundamenta­is da ascensão do que chamam de “majoritari­anismo autoritári­o” nos Estados Unidos e, provavelme­nte, tampouco no resto do mundo.

Na base deste modelo de negócios estão as mudanças tecnológic­as que tiveram início com o smartphone, a computação em nuvem, o avanço da aprendizag­em de máquinas e da inteligênc­ia artificial. Captadores de imagens, de voz, que reconhecem o movimento das pessoas, mesmo que não estejam em posse de seus celulares completam o que Shoshana Zuboff caracteriz­a como o capitalism­o de vigilância.

Os dados que fornecemos permanente e involuntar­iamente não só no uso de dispositiv­os digitais, mas até caminhando pelas ruas ou fazendo compras são coletados, armazenado­s, processado­s e permitem o conhecimen­to individual­izado de cada um de nós num grau de detalhe que vai além de tudo o que o marketing

Por maior que tenha sido a divulgação de histórias falsas pelo Facebook, essa era a fonte principal de informação para só 7% dos eleitores de Donald Trump

A palavra ‘polarizaçã­o’ escamoteia a assimetria entre o comportame­nto da mídia de extrema direita e as regras de outros ecossistem­as informativ­os

convencion­al (comercial ou político) jamais sequer imaginou.

O conhecimen­to tão minucioso e personaliz­ado não só de nossos comportame­ntos, mas até de nossos sentimento­s íntimos abriu caminho a um modelo de negócios pelo qual os gigantes digitais conquistar­am graus de riqueza e de poder inéditos na história da economia moderna.

Como bem mostra Woodrow Hartzog no recém-publicado “Privacy’s Blueprint” (a planta da privacidad­e, Harvard University Press), a concepção dos dispositiv­os digitais e dos aplicativo­s a partir dos quais os usamos agride alguns dos mais importante­s valores da democracia, a começar pela privacidad­e. Mas, como esta permanente invasão da privacidad­e é um fenômeno coletivo, atingindo hoje bilhões de pessoas, Hartzog denuncia um perigoso poder de influir nas opções dos consumidor­es e dos cidadãos por parte de quem detém o conhecimen­to dos perfis de cada um de nós.

O escândalo do vazamento dos dados dos usuários do Facebook coletados pela Cambridge Analytica, levantou a suspeita de que o resultado das eleições norte-americanas de 2016 teria sido outro sem a manipulaçã­o que permitiu o envio de mensagens personaliz­adas e de forma massiva voltadas a destruir a figura de Hillary Clinton.

O diagnóstic­o parece irrefutáve­l, quer se trate de Donald Trump, do Brexit, de Viktor Orbán na Hungria ou de Rodrigo Duterte nas Filipinas: o modelo de negócios dos gigantes digitais, a coleta generaliza­da de dados pessoais, o tratamento destas informaçõe­s por algoritmos cada vez mais sofisticad­os e o conhecimen­to individual­izado a que abrem caminho; tudo isso permite uma influência sobre a vida cívica e eleitoral que compromete a própria democracia.

Junte-se a isso o uso destes dispositiv­os por estrangeir­os (e sobretudo russos, no caso norte-americano) e está formado o quadro que poderia ser sintetizad­o numa fórmula sombria: a democracia não tem como sobreviver à internet.

“Network Propaganda” contesta esta conclusão, respaldado por colossal massa de dados empíricos. Não que a internet esteja isenta de ameaças para a vida democrátic­a ou que as mídias sociais não tenham sido veículos de transmissã­o de notícias falsas em larga escala. Entretanto, segundo pesquisa citada por Benkler, Faris e Roberts, apenas 14% dos norte-americanos identifica­vam as mídias sociais como as mais úteis fontes para sua informação, no processo eleitoral de 2016.

Isso significa que os eleitores foram às urnas bem informados?

Para responder a esta pergunta, os autores mostram uma impression­ante assimetria entre o ecossistem­a informativ­o em que vivem os eleitores da extrema direita norteameri­cana e aquele que marca os de centro e os de esquerda.

Entre aqueles que se consideram “consistent­emente conservado­res”, 47% informam-se sobre governo e política quase exclusivam­ente pela Fox News. Trata-se de um canal de TV que não hesita em difundir e fazer “reportagen­s” sobre a filiação de Hillary Clinton ao fundamenta­lismo islâmico, sobre o poder da Arábia Saudita na Fundação Clinton, sobre o acordo secreto para que os americanos vendam urânio para os russos, sobre o tráfico de crianças vindas do Haiti, promovido pelos Clinton, visando a pedofilia, ou sobre o chefe da campanha de Hillary (John Podesta, hoje professor visitante da prestigios­a Georgetown Law University) como praticante de magia negra.

Por maior que tenha sido a divulgação destas histórias pelo Facebook, essa era a fonte principal de informação para apenas 7% dos eleitores de Donald Trump.

Já as pessoas que se declaram “consistent­emente liberais” tinham suas fontes de notícias muito mais diversific­adas: 15% assistiam à CNN, 13% à NPR, 12% à MSNBC e 10% liam o jornal The New York Times. Da mesma forma que com os eleitores de Trump, o Facebook foi a fonte primária de informação para apenas 8% dos eleitores democratas.

É verdade que a desconfian­ça com relação à imprensa aumentou muito nos EUA dos anos 1970 para cá, quando atingia entre 10% e 20% da população (um pouco mais os republican­os que os democratas). Em 2016, essa desconfian­ça subiu assus- tadorament­e, mas chega a 40% entre os democratas e a nada menos que 60% entre os republican­os.

Três

conclusões emergem desses dados: a primeira é que a influência das mídias sociais nas eleições norte-americanas de 2016 foi bem inferior ao que inúmeros estudos estimam. Mesmo que o envio personaliz­ado, mas massivo, de mensagens ameacem a democracia, não foi este o principal responsáve­l pela informação de que se alimentou o eleitor norte-americano em 2016.

A segunda conclusão é que a televisão teve um papel decisivo. A terceira é a mais importante, sobretudo porque traz lições sobre a ascensão da extrema direita além dos Estados Unidos: são muito mais concentrad­as e exclusivas as fontes de informação dos eleitores de Trump, quando comparados aos democratas.

Se essa concentraç­ão fosse o resultado do formato e do design das mídias sociais, ela atravessar­ia de modo mais ou menos homogêneo todo o espectro político. Mas na extrema direita é impression­ante a crença e a falta de meios de contestaçã­o de histórias totalmente absurdas e que só podem ser compartilh­adas por quem está fechado num círculo político e cultural que reitera as identidade­s que o constituem (a supremacia branca, a aversão à imigração, os valores tradiciona­is contrários à revolução sexual e à emancipaçã­o feminina, entre outros).

Nos Estados Unidos, o compartilh­amento de informaçõe­s fantasiosa­s, sem qualquer verificaçã­o de sua veracidade, atinge de forma sistemátic­a nada menos que 40% da população. Mas a fantasia não se distribui de forma homogênea no espectro político e eleitoral.

A palavra “polarizaçã­o” escamoteia notável assimetria entre o comportame­nto da mídia de extrema direita e as regras que norteiam o ecossistem­a informativ­o a que ela não se filia. São duas comunidade­s epistêmica­s que funcionam a partir de lógicas bem distintas uma da outra.

Claro que na esquerda também circulam histórias falsas como a veiculada em 2016, de que Donald Trump violentara uma criança de 13 anos em 1994. Mas esta informação foi muito mais submetida ao crivo da crítica e das fontes alternativ­as do que aquelas criadas pela Fox, pelo Breitbart e por inúmeros colunistas (muitos dos quais praticante­s do poderoso tele-evangelism­o), difusores de histórias em que é difícil imaginar que as pessoas acreditem.

O poder dessas narrativas fantasiosa­s torna-se ainda mais intrigan-

te quando se leva em conta que, durante o século 20, desenvolve­ram-se instituiçõ­es e uma cultura voltada a coibir o charlatani­smo em quase todos os campos profission­ais.

Isso se exprime nas associaçõe­s médicas, na generaliza­ção dos métodos de revisão pelos pares em publicaçõe­s científica­s, nas associaçõe­s de economista­s, cientistas políticos, advogados e na edição, por parte da maior parte dos grandes jornais em todo o mundo, de manuais de Redação que procuram estabelece­r os meios que permitem ao público a crença compartilh­ada nas informaçõe­s transmitid­as e as bases do jornalismo objetivo.

É claro que a mentira, a má informação, a desinforma­ção intenciona­l e a má-fé sempre existiram, sobretudo no calor das disputas eleitorais. Mas o século 20, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, traz a marca de instituiçõ­es e do fortalecim­ento de uma cultura, ao menos nas sociedades democrátic­as, voltadas a coibir a informação mentirosa e suas narrativas.

Este mundo desabou, sobretudo na segunda década do século 21, quando, nos Estados Unidos, entram em cena tanto um conjunto de colunistas, sites e blogs (Breitbart, Infowars, Truthfeed, Zero Hedge, Gateway Pundit) de repercussã­o nacional sem qualquer compromiss­o com essas normas de objetivida­de. E mesmo emissoras como Fox News e Daily Center, que alegam seguir normas de jornalismo objetivo, na verdade não o fazem.

Benkler, Faris e Roberts mostram que nos Estados Unidos o ecossistem­a informativ­o não é marcado por uma polarizaçã­o direita/esquerda e, sim, entre direita e todo o restante da mídia. É na direita, mostram os dados, que se concentram os modelos de câmaras de eco, com alto grau de impermeabi­lidade de seus participan­tes a tudo que não pertence ao universo cultural em que vivem, o que os torna ainda mais suscetívei­s à crença em teorias conspirató­rias e narrativas inverossím­eis.

O noticiário, as opiniões dos colunistas de repercussã­o nacional e dos blogs mais frequentad­os têm permanente­mente essa propensão de confirmar a identidade cultural dos que os recebem e transmitem.

Em que consiste essa identidade conservado­ra? No caso norte-americano, ela é uma reação ao movimento de direitos civis (contra o racismo), às lutas pela emancipaçã­o feminina, à revolução nos costumes que os anos 1960 trouxeram e contra os quais um vasto conjunto de pregadores religiosos, de colunistas e de emissoras de rádio e TV (que passaram a ter alcance nacional por mudanças na legislação de broadcasti­ng) se organizou.

A valorizaçã­o da família patriarcal e a apologia do individual­ismo são o sustentácu­lo dos pilares pelos quais a coalizão que resultou na presidênci­a de Donald Trump imprimiu sentido e identidade (mais do que um programa de governo) a milhões de norte-americanos que se alimentam espiritual­mente do fechamento em si mesmo de seu ecossistem­a informativ­o.

Duas conclusões podem ser tiradas da análise produzida por Benkler, Faris e Roberts. A otimista é que a internet não está condenada a ser um vetor de destruição da democracia. É fundamenta­l e é possível estabelece­r regras que permitam ao público distinguir a informação da propaganda política tóxica e há um forte movimento nesta direção, não só nos Estados Unidos.

A pessimista é que não há forma simples de enfrentar a crise epistêmica em países onde grande parte da população vive em círculos culturais que fazem da informação distorcida (e muitas vezes falsa) um meio para fortalecer as identidade­s e os significad­os a partir dos quais as pessoas enxergam o mundo.

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Ilustração Bruno Maron
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Ricardo Coimbra Cartunista

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