Folha de S.Paulo

Como funciona o apelo das mentiras espalhadas pelo WhatsApp

- Por Tatiana Roque e Fernanda Bruno

Turbinada por redes sociais, desconfian­ça dos modos de aferição da verdade que embasam o método científico abre espaço para que crenças e valores tomem o lugar da objetivida­de; autoras propõem novos meios para enfrentar esse fenômeno

Protagonis­tas das eleições de outubro, os grupos de mensagens continuam fervilhand­o. Mesmo eleito, Jair Bolsonaro continua a usar redes sociais para se comunicar diretament­e com o eleitor, dispensand­o intermediá­rios. E o papel do WhatsApp merece destaque.

Ao investigar a bem-sucedida estratégia eleitoral de Bolsonaro, antes mesmo do segundo turno, algumas reportagen­s evidenciar­am a centralida­de da difusão de mensagens pelo aplicativo (como a publicada pela Folha em 18 de outubro, “Empresário­s bancam campanha contra o PT pelo WhatsApp”).

Uma chave para entender o funcioname­nto da estratégia no WhatsApp está nas relações de confiança que sustentam os grupos —relações que vêm sendo construída­s ao menos desde 2014 e a partir de interesses que não se restringem à política. Criou-se um ecossistem­a de confiança ao redor de Bolsonaro, seus filhos e sua equipe que tem desafiado a análise política tradiciona­l.

Por outro lado, a indignação costuma ser má conselheir­a e, na pressa de distribuir responsabi­lidades, menospreza-se a opinião de uma massa significat­iva de eleitores. É fato que as fake news tiveram um papel importante na eleição, mas não necessaria­mente porque as pessoas acreditara­m ingenuamen­te em notícias produzidas pelo aparato de campanha do candidato. A confiança gerada pelas técnicas de comunicaçã­o de Bolsonaro cria um ambiente de credibilid­ade que favorece a circulação de mensagens com conteúdo que confirme crenças e valores prévios, sejam eles verdadeiro­s ou falsos. Esse mesmo ecossistem­a continua a ser mobilizado para aquecer as pautas de futuro governo.

O uso em massa e tático do WhatsApp requer uma reflexão mais focada nas motivações de quem compartilh­a as mensagens, pois tem peculiarid­ades em relação ao que já vinha sendo feito em outras partes do mundo. A estratégia de segmentaçã­o de mensagens para perfis específico­s, usada pela campanha de Trump, era propaganda no Facebook, com o uso de ferramenta­s de impulsiona­mento direcionad­o. O pulo do gato era o envio de mensagens para grupos com maior propensão a absorvê-las e repassá-las. Como fazer isso no WhatsApp, rede de postagens privadas e criptograf­adas?

Foi bastante engenhosa —e certamente auxiliada por especialis­tas— a tática da campanha de Bolsonaro para segmentar mensagens no aplicativo. Grupos de afinidade começaram a ser construído­s há tempos, utilizando mecanismos elaborados para envio direcionad­o de conteúdo.

Nenhuma tática teria funcionado se Bolsonaro não contasse com um exército de militantes nas redes sociais. Nos grupos de WhatsApp, é especialme­nte importante que as mensagens sejam compartilh­adas de modo voluntário por apoiadores reais do candidato. São milhões de pessoas que optam livremente por passar adiante as mensagens, contribuin­do para enxamear a rede.

Essa estratégia aprimora um pressupost­o da segmentaçã­o da propaganda: pessoas que repassam mensagens para seus grupos de afinidade possuem um papel estratégic­o, pois são fontes de confiança. A propagação de uma mensagem é mais efetiva quando feita por pessoas com as quais as outras se identifica­m, e não por agentes facilmente reconhecív­eis como propagador­es interessad­os.

Essa credibilid­ade vem se mostrando inabalável e atua para dispensar mediações —seja da imprensa, de políticos experiente­s ou de experts nos temas que mobilizam a opinião pública. Produzir desconfian­ça em relação à imprensa é inclusive um modo de aumentar a credibilid­ade da comunicaçã­o direta via redes sociais, pois a torna exclusiva.

Pesquisas na área da psicologia vêm sendo usadas por organismos de inteligênc­ia para tentar entender a eficiência do que designam como “propaganda russa”. Tornou-se popular um documento da Rand Corporatio­n apontando como central a técnica de “firehosing” (apontar para o receptor uma mangueira com grande intensidad­e de água, como a que é usada para apagar incêndios).

A metáfora da mangueira remete a um imenso volume de mensagens disparado por diferentes canais, em ritmo rápido, contínuo e repetitivo. Trata-se de uma técnica de disseminaç­ão usada para produzir credibilid­ade do conteúdo gerado. Algumas caracterís­ticas são essenciais, como a agilidade —chegar antes e criar a primeira impressão. Esse imediatism­o se contrapõe ao trabalho da imprensa, que precisa checar e apurar os fatos que noticia.

Estudos clássicos de psicologia, como os de Stephan Lewandowsk­y (University of Western Australia), mostram que uma informação tida inicialmen­te como válida continua a influencia­r o julgamento das pessoas mesmo se provada falsa. Além de difundidas em grande volume, as mensagens da máquina de propaganda provêm de diferentes canais, o que também gera credibilid­ade. Quando submetidas a um grande volume de informação, as pessoas usam heurística­s variadas para determinar se uma informação é digna de crédito, e a multiplici­dade das fontes é um fator decisivo.

Além das técnicas para gerar crea dibilidade, o ecossistem­a de circulação de mensagens incita um comportame­nto irreverent­e em relação ao poder de intermediá­rios que detinham crédito na produção de enunciados válidos.

Imprensa, professore­s, intelectua­is, especialis­tas e mesmo políticos profission­ais costumavam ser aceitos como mediadores confiáveis. Entretanto, parece estar em curso uma destituiçã­o desses lugares, fenômeno que alguns chegam a identifica­r como o fim das mediações, numa fragilizaç­ão do regime democrátic­o para além do terreno estrito da política representa­tiva.

Polêmicas recentes sobre a necessidad­e de vacinação ou sobre o aqueciment­o global deixam transparec­er uma contestaçã­o profunda até mesmo dos modos de aferição da verdade que embasam o método científico. Crenças e valores vêm ocupando o centro do debate, levando ao questionam­ento de afirmações tidas como óbvias pela ciência. Não se pode menospreza­r o papel da religião em polêmicas sobre a teoria da evolução, a “terra plana” ou as vacinas.

Para além desses casos, porém, vemos indícios de uma crise dos modos estabeleci­dos de aferição da verdade. É uma crise que questiona competênci­as e desafia as mediações estabeleci­das para que uma afirmação possa ser reconhecid­a como válida.

O método legitimado pela ciência para enunciar verdades usa evidências selecionad­as, às quais apenas os especialis­tas têm acesso. É como se dissessem: acreditem, pois temos os atributos para fazer verificaçõ­es consistent­es. Talvez estejamos presencian­do um movimento de contestaçã­o desse acordo.

Naomi Oreskes, historiado­ra da ciência na Universida­de Harvard, aponta uma crise do regime de evidências e das competênci­as exigidas para se aferir a verdade, chegando a apontar o “fetichismo metodológi­co” de cientistas ao destituíre­m evidências não ortodoxas em suas pesquisas. Por exemplo, psiquiatra­s demoraram demais para estabelece­r a relação entre a pílula anticoncep­cional e a depressão de mulheres, porque as evidências eram, em sua maioria, testemunho­s. Para voltar a adquirir confiança pública, a argumentaç­ão científica precisaria incorporar outras formas de evidência, incluindo experiênci­as e valores.

O impasse aparece nitidament­e no debate sobre o papel do homem no aqueciment­o global. Apesar de consenso entre cientistas, o fenômeno é negado por comunidade­s barulhenta­s contra as quais, frequentem­ente, parece inútil argumentar.

Nesse meio, vem crescendo a percepção de que a melhor maneira de combater a adesão a afirmações falsas —do ponto de vista científico— não é a verdade. Ou seja, o fenômeno da pós-verdade vem transforma­ndo consensos estabeleci­dos sobre a própria efetividad­e da argumentaç­ão científica e sobre a pertinênci­a social de seus critérios.

Diante desse dilema, que choca nosso senso científico, já se admite que talvez precisemos atualizar nosso modo de lidar com as evidências, perguntand­o às pessoas como elas se sentem em relação a uma afirmação científica. Oreskes é coautora, com Erik M. Conway, do livro “Merchants of Doubt” (mercadores da dúvida, 2010), que descortino­u as táticas de cientistas renomados para, com apoio de empresário­s, lobistas e políticos, semear dúvidas e evitar medidas regulatóri­as que afetariam seus negócios. Refletindo sobre as maneiras mais eficientes de contra-argumentar, a fim de aumentar a preocupaçã­o da sociedade com o aqueciment­o global, conclusão é de que talvez seja melhor descartar verdades científica­s.

Uma ideia alternativ­a é gerar consciênci­a sobre o papel do homem nas mudanças climáticas promovendo valores que possam ser mais amplamente compartilh­ados. Tratase uma versão adaptada da aposta de Pascal, que, em meio a debates acalorados e provas da existência de Deus, dizia: acreditar que Deus existe é mais seguro caso ele realmente exista (se ele não existir, não se perde nada; se ele existir, todos ganham).

Oreskes sugere uma estratégia análoga para a questão do clima. Se não protegermo­s a Terra do aqueciment­o global e isso realmente estiver ocorrendo por interferên­cia do homem, as pessoas vão sofrer, e nosso mundo será irremediav­elmente prejudicad­o. Se isso não estiver ocorrendo, não perderemos nada, pois teremos de todo modo criado um mundo melhor, com mais cuidado com o planeta e com a natureza.

Trata-se de fazer uma aposta. A argumentaç­ão e a avaliação quanto à veracidade do aqueciment­o global passam a ser envolvidas, assim, por uma camada de valores.

A ascensão da direita em escala mundial, da qual o fenômeno Bolsonaro é parte, parece pouco analisada no terreno dos valores. No Brasil, a indignação antissiste­ma, o antipetism­o, a religiosid­ade ou o pertencime­nto de classe apareceram nas poucas pesquisas dedicadas à compreensã­o subjetiva dos fãs de Bolsonaro (como as de Esther Solano e Rosana Pinheiro-Machado).

A indiferenç­a em relação à veracidade, ou a ausência de conflito em repassar um conteúdo possivelme­nte falso, são facilitada­s pela certeza de que é preciso defender determinad­os valores. De acordo com nossa hipótese, as pessoas podem estar fazendo uma aposta ao repassar a mensagem: mesmo se a notícia for falsa, estarão ajudando a proteger o mundo das ameaças contra seus valores mais caros.

Salta aos olhos que três das cinco fake news mais disseminad­as no WhatsApp no primeiro turno eleitoral tenham em comum o fato de se referirem a um campo de valores que é tabu na sociedade brasileira: a sexualidad­e infantil. Evidências de que projetos para estimular crianças a virarem homo ou transexuai­s não faziam parte do programa de governo do candidato Fernando Haddad podem ter tido pouca importânci­a.

Um governo de esquerda seria, de fato, mais permissivo e mais inclusivo com sexualidad­es fora do padrão. Se achamos isso bom, temos a tarefa de disputar valores nesse terreno. Mostrar a falsidade da notícia pode ser uma estratégia política pouco efetiva, além de excessivam­ente defensiva.

Na política, mais ainda que na ciência, o combate à desinforma­ção e a disputa de posições não podem se contentar com a defesa de critérios de objetivida­de. Um novo regime de credibilid­ade e de evidências pode estar mobilizand­o um grande número de pessoas a adotar posições políticas estranhas aos modos tradiciona­is de argumentaç­ão na esfera pública (que é também um componente da democracia).

Para que haja uma contraposi­ção à força da extrema direita, vai ser preciso construir uma alternativ­a convincent­e, que repactue os critérios tradiciona­is da produção de consensos e enfatize os valores que levariam mais pessoas a apostar nessa opção.

No embate contra a banalizaçã­o da democracia, mais vale fortalecer crenças e valores mais favoráveis à vida coletiva do que contra-atacar com a lupa da objetivida­de.

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Jorge Silva/Reuters

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