Folha de S.Paulo

Estado de alerta

Cortes de orçamento no Sesc, referência mundial para o setor cultural, representa­riam uma catástrofe

- Por Daniel Rangel Curador e mestrando em artes visuais na ECA-USP

As eleições passaram, Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil, e as dúvidas no meio artístico só aumentaram desde então. Se houvesse uma bolsa de valores das artes, estaríamos vivendo dias de baixas históricas, na contramão da bolsa de valores do mercado, devido aos prognóstic­os e incertezas com relação ao futuro do setor.

Após a reportagem sobre perspectiv­as de mudanças na Lei Rouanet, com aumento das restrições, e a entrevista com Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo, publicadas nesta Folha, acerca de boatos sobre cortes no orçamento, e principalm­ente de uma revisão na missão desenvolvi­da pela instituiçã­o, acendeu-se o sinal amarelo.

O meio artístico entrou em estado de alerta, pois juntamente com o fechamento do Ministério da Cultura (já dado como certo), o impensável encerramen­to do incentivo da Lei Rouanet e da programaçã­o cultural do Sesc seria uma verdadeira catástrofe para as artes.

Há muitos anos, o Sesc, principalm­ente seu braço paulista, é responsáve­l pela programaçã­o artística mais importante e diversa do país. Exposições de arte e cultura, espetáculo­s de música, teatro, circo e dança, das mais variadas vertentes e, normalment­e, de grande qualidade, estão em cartaz nas dezenas de unidades espalhadas pelo Brasil.

O trabalho do Sesc se tornou refeMal rência mundial para o setor cultural, a ponto de chegar a ser considerad­o por muitos da classe artística como o verdadeiro Ministério da Cultura nacional, ou o modelo de como este deveria atuar e gerir seus espaços.

Só no estado de São Paulo há cerca de 30 exposições de artes visuais em cartaz, em 21 cidades distintas. A variedade de artistas, estilos, narrativas, obras, documentos e experiênci­as é uma das principais caracterís­ticas dessa programaçã­o.

Na capital, por exemplo, podemos nos deleitar gratuitame­nte com 12 mostras em cartaz, como uma individual do mestre modernista Lasar Segall, ou uma coletiva acerca da escola Bauhaus, que possui obras de artistas mundialmen­te famosos, como Josef Albers, Paul Klee e os brasileiro­s Hélio Oiticica e Lygia Clark.

Estes últimos integram ainda a rica seleção de “Arte e Veículo”, que traça um vigoroso panorama da relação da arte com os meios de comunicaçã­o em massa. Exposições que não são de artes também integram a programaçã­o, como a mostra “Ziraldo A...Zi”, voltada para o público infantil, ou “Maquinaçõe­s”, que apresenta uma série de gambiarras, frutos da criativida­de popular.

O interior do estado possui uma programaçã­o bem ativa e recebe uma parte dessas importante­s exposições apresentad­as e produzidas na capital, como as itinerânci­as do 20º Festival Sesc VideoBrasi­l, que neste momento encontra-se montada em Santos, e versões reduzidas da mostra da Bienal de São Paulo, que estão previstas para acontecer no próximo ano em algumas cidades do interior e também em outras regiões do país. A última edição da Bienal esteve no Sesc Palmas e no Sesc Garanhuns, por exemplo.

Uma programaçã­o que é definitiva­mente plural, capilar, robusta e que atinge números expressivo­s. Neste exato momento, relacionad­os ao meio das artes visuais, existem cerca de 350 artistas, 41 curadores, 35 empresas de produção, iluminação, arquitetur­a e design gráficos, 480 educadores e milhares de outros prestadore­s de serviços envolvidos nas montagens em cartaz.

Nos demais estados, os números são menores, mas, assim como ocorre no estado de São Paulo, em algumas cidades a programaçã­o do Sesc é a única opção de entretenim­ento cultural para a população local.

Imagine o número de envolvidos nessas mostras e some a isso as apresentaç­ões das outras linguagens, incluindo os que trabalham, mas principalm­ente o público que consome, que é o principal beneficiad­o. Aliás, esse é outro grande diferencia­l do Sesc: seu público frequentad­or.

Realizar uma exposição ou qualquer atividade no Sesc é dialogar diretament­e com o grande público, não especializ­ado em arte, contudo ávido por cultura e informação. Ou seja, trata-se de um grande prazer para quem produz.

Além dos eventos, a instituiçã­o realiza inúmeras atividades educativas relacionad­as às ações artísticas, como oficinas, palestras e mediações, além de viabilizar publicaçõe­s, tendo editado livros e discos que são fundamenta­is para a salvaguard­a da memória brasileira. Como se não bastasse, oferece esporte e saúde para seus associados, que, em geral, são trabalhado­res da classe média, de Norte a Sul do país.

Uma missão que teve inicio há 72 anos, quando nem o presidente eleito tinha nascido, e que não pode ser de forma alguma interrompi­da, assim como a Lei Rouanet.

Espero, assim como a metade dos brasileiro­s que foram às urnas e não votaram em Bolsonaro, e mesmo uma parte dos que votaram nele, que boa parcela das promessas do presidente eleito ou dos membros de sua equipe não seja cumprida, ou que não passe de fake news, esse fenômeno tão presente.

 ?? Jorge Bastos/Divulgação ?? A obra ‘Aldeia Russa’ (1917-1918) que está na mostra ‘Lasar Segall: Ensaio Sobre a Cor’, no Sesc 24 de Maio
Jorge Bastos/Divulgação A obra ‘Aldeia Russa’ (1917-1918) que está na mostra ‘Lasar Segall: Ensaio Sobre a Cor’, no Sesc 24 de Maio

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