A alma para a visão de Deus
‘No interior das orações místicas de Jorge de Lima, havia referências a um mundo muito terreno’
chegado à adolescência, comecei a ler Jorge de Lima pelos versos parnasianos e um pouco de seu modernismo, do “Acendedor de Lampiões” a “Essa Negra Fulô”. Encanteime e não parei mais de ler o poeta alagoano, o que fiz pelo resto da vida, com um assombro cada vez maior.
Não sei direito como cheguei a “Túnica Inconsútil”, o livro no qual se encontra “O Grande Circo Místico”.
Eu já estava inebriado com tudo que lera do autor, já sabia de cor a agenda de seu encontro com outro poeta que eu passara a admirar por indução, Murilo Mendes, na companhia de quem Jorge de Lima se propusera “restaurar a poesia em Cristo”.
Embora eu ainda fosse voluntário da fé que o Colégio Santo Inácio nos obrigava, não era a anunciada presença do Cristo que me atraía naqueles poemas. No interior daquelas orações místicas de versos livres e rimas musicais, havia referências a um mundo muito da terra, obrigando-nos a pensar sobre a vida bem abaixo do céu.
E, de repente, dou de cara com aquele poema que fazia do circo um espaço de acertos espirituais, onde o que era mais que humano se tornava, por contradição, imagem intangível com heroínas montadas num trapézio, “duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps”.
O poema começa quase como prosa, contando a reta genealogia da família Knieps, que fundara e administrava o Grande Circo Knieps, “de que tanto se tem ocupado a imprensa”. Na verdade, o patriarca Frederico Knieps era o médico da Imperatriz Teresa e queria que seu filho também fosse doutor. Mas o rapaz conheceu e se apaixonou pela equilibrista Agnes, com quem se casou e iniciou a dinastia da família circense.
Quem era a Imperatriz Teresa? O poeta não responde, mas podemos imaginar, pelo sobrenome do médico, que a Imperatriz veio de um país qualquer da Europa Central, desses que deixam de existir e voltam a existir em curto espaço de tempo, sem que saibamos bem por quê.
Muito depois, procurando documentos sobre o assunto, descobri que os Knieps realmente existiram, eram donos de circo e originários mesmo da Europa Central. Tudo o que o poema nos conta deve ter se passado de verdade, metade nos jornais da época, a outra metade na inspiração mística de Jorge de Lima.
E por que Agnes ficou tão pouco tempo no poema, dois versos apenas, quase nada, se foi a paixão que tudo provocou? Chico Buarque, que fez as letras para as canções de Edu Lobo, criadas para um balé do Teatro Guaíra montado por Naum Alves de Souza, matou a charada: Agnes não rima com nada.
A moça então trocou seu nome para Beatriz, que rima com bis, imperatriz, feliz e outras palavras mais sonoras e significantes.
O poema recorre a estranhezas que vão ficando cada vez mais obscuras e, ao mesmo tempo, mais exaltantes na medida em que relata o desempenho amoroso e sensual da família Knieps, um comportamento que provoca a genealogia descrita com entusiasmo crescente.
Uma neta de Frederico tatuou no ventre a imagem de um santo; a filha dela quis entrar para um convento, mas o pai não atendeu; ela, então, tatuou o corpo inteiro, “sofrendo muito por amor de Deus/ pois gravou em sua pele rósea/ a Via-Sacra do Senhor dos Passos/ E nenhum tigre a ofendeu jamais”.
Custei a entender por que seu esposo nunca mais a pôde amar, se o monstruoso Rudolf, o homem-fera, a derrubou e a violou à força, convertendo-se antes de morrer. E então a violentada dá à luz as duas meninas que são o prodígio do circo.
Nunca, em toda a minha vida, li coisa mais bonita do que os versos do poema que falam sobre as gêmeas; sempre me fizeram chorar:
“A plateia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos./ (...) mas ninguém vê as almas que elas conservam puras./ E quando atiram os membros para a visão dos homens,/ atiram a alma para a visão de Deus”.
Sempre achei que um dia faria um filme baseado em alguma coisa de Jorge de Lima, mas nunca pensei que seria “O Grande Circo Místico”.