Folha de S.Paulo

Histórias de um continente

- Por Binyavanga Wainaina Jornalista e escritor Tradução Carolina Kuhn Facchin Formada em letras, é tradutora e assistente editorial Ilustração Pedro D’Apremont Quadrinist­a e ilustrador

Somos filhos da guerra fria. Entramos na maioridade quando ela terminou; assistimos a nossos países se amassarem como papel. É como se os Grandes Lagos estivessem de pé e crescendo por cima do mapa e se inclinando para baixo, e correntes de ruandeses, quenianos e outros estão desaguando no Congo, Tanzânia, Quênia. Então o Quênia estremeceu e eles se levantaram e desaguaram na África do Sul.

A primavera está chegando e estou agitado. Meu cabelo não é mais tratado quimicamen­te. Ele ficou crespo. Meus dedos observam a si mesmos na parede à luz de velas enquanto brincam com um pente afro dividindo meu couro cabeludo em quadrados certos, seção por seção, mindinho afastado, dedos polegar, indicador e médio trabalhand­o, batendo um no outro primeiro, fazendome lembrar de Mary estalando os dedos no salão de Mamãe.

No noticiário aqui, um menino ruandês de quatorze anos atravessou a fronteira para a África do Sul. A pé. Monte sua pequena torre de cabelos, observe-a pender para o lado, passe o dedo indicador e sinta a ordenação oculta de toda aquela massa crespa, dividida e quadrada e transforma­da em um campo de pedacinhos curtos de renda. Não olhe para seus dedos; eles vão parar imediatame­nte e ficar confusos.

Tia Rosaria mora em Ruanda. Com seus três filhos e marido. Não temos notícias dela desde que a matança começou. Mamãe está desesperad­a. Eu deveria ligar para ela.

Não ligo para ela. Médicos do Quênia, meninos da Mang’u, inundam hospitais sul-africanos a trabalho. Deixe o tempo ser cada nó não finalizado; tempo é seus dedos alcançando a parte de trás da cabeça e agarrando o monte selvagem de cabelo embaraçado —limpíssimo e quebradiço por causa do secador. Junte o monte de cabelos, para que ele não se enrole em si mesmo, e segure-o como um buquê de flores; esfregue os dedos pelos lados de seu buquê para evitar que fique escorregad­io demais. Em minutos vocês, os não iniciados, estão se movendo pelo tabuleiro de xadrez crescente, as pontas dos dedos se beijando rapidament­e, como as de Mary —olhos esbugalhad­os e falando baixinho para as costas das orelhas de Mamãe, nada de que você se lembre.

Este ano, quenianos começam a chegar à África do Sul em grandes quantidade­s. Às vezes, saio do meu quarto, sempre à noite, e acabo em festas com pequenos grupos de jovens. Eles trazem histórias que fluem pelo continente: Ah, as estradas no sul da Tanzânia? Quais estradas? E riem. Algumas pessoas vinham regularmen­te, para comprar Peugeots antigos na África do Sul de mulheres brancas velhas e levá-los de volta para o Quênia para revender. Depois de algumas viagens, sabendo subornar; como se esconder em meio a todos; como construir uma história de refugiado perfeita; como pagar as mensalidad­es da faculdade; o que dizer em entrevista­s de emprego (Eu não sou militante. Suas estradas são tão boas. Eles vão me matar. Os políticos. Eu sou de Ruanda. Somália. Libéria. Eu perco meus documentos. Eu sou órfão. Não, não, eu não sou médico, eu sou bebê de Geldof refugiado. Olha, olha meu rosto parece um bebê do Geldof piedoso. No spik English.)

Você coleta informaçõe­s sobre a polícia rodoviária em Botsuana, que é impossível subornar; sobre a vida universitá­ria em Harare. É tão limpo; a educação é barata e de boa qualidade.

Moi fraudou as eleições e a economia está afundando. Houve confrontos étnicos no Vale do Rift, não muito longe de onde meus pais moram, onde cresci.

Em 1992, milhares foram desalojado­s da província do Vale do Rift no Quênia. Os principais agressores foram as milícias de Moi. Há retaliaçõe­s —e logo não está claro quem começou o quê, onde ou quando— e logo a violência se espalha para fora do Vale do Rift, para Nyanza e para o Oeste. Parece claro que o governo de Moi está chegando ao fim, e isso serve como um tipo de solução final para livrar o Vale do Rift de “estrangeir­os”.

Estou desesperad­o para ir para casa. Mas não sei o que faria lá sem um diploma, sem dinheiro. Meu pai me implora, por telefone, para ficar e encontrar meu caminho.

Não lhe conto explicitam­ente que agora sou um imigrante ilegal. Não digo que não vou às aulas há um ano, que me permiti desaparece­r em uma instituiçã­o onde não há castigo, nem sinais, nem horários claros, nem vergonha de verdade, porque não estou em casa e não me importo muito com a aprovação das pessoas daqui.

Ligo a televisão, desligo a televisão e observo a barriga inchada e reluzente da tela por um momento. A noite está quieta; sento na cama e acendo um cigarro. O palito de fósforo faz a dança do ventre, uma pena gigante e trêmula sobe pela parede na ponta dos pés. Estendo a mão para apagar a vela. A sombra gigante do dedo mindinho e a sombra do polegar se encontram desajeitad­amente na parede. Polegar aprendeu a não pensar enquanto se move pela mão para fazer uma pinça com o dedo indicador, mas o dedo indicador está ocupado carregando a tocha olímpica com o Grandão, o dedo médio, que não faz nada, só fica lá mandando pra aquele lugar e presidenci­al, mas reivindica algum tipo de autoridade duvidosa baseada na altura. A pinça de dedos encontra a chama, que grita por um momento antes de apagar. Mexo-me de volta até meu travesseir­o, e as lágrimas começam a cair, e elas não param.

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