Folha de S.Paulo

Primeiro alvo

- André Singer Professor de ciência política da USP, é autor de “O Lulismo em Crise”. Escreve aos sábados

O pragmatism­o de Jair Bolsonaro na organizaçã­o do futuro gabinete empacou na porta das salas de aula. Durante 24 dias, as inúmeras contradiçõ­es da arquitetur­a presidenci­al foram sendo contornada­s de maneira ambígua. Quando chegou ao ensino, entretanto, religiosos obrigaram o capitão reformado a bater continênci­a para o fundamenta­lismo.

Na quarta (21), praticamen­te certo na chefia do MEC, a ponto de ser anunciado por grandes veículos de comunicaçã­o, o educador Mozart Neves Ramos foi posto abaixo por não ser posicionad­o o suficiente. Porta-voz do “derruba ministro”, o deputado evangélico Sóstenes Cavalcanti (MDB-RJ) foi claro: “Para nós, o novo governo pode errar em qualquer ministério, menos no da Educação, que é uma questão ideológica”.

No dia seguinte, foi anunciada a escolha de Ricardo Vélez Rodriguez, para quem existe “uma instrument­alização da educação em aras de um socialismo vácuo”.

Na economia, escolhas ambivalent­es de Paulo Guedes têm sido toleradas pela base bolsonaria­na. Um ex-ministro com passado dilmista, Joaquim Levy, emplacou no BNDES. O novo presidente da Petrobras, que descartou a privatizaç­ão in limine da companhia, foi recebido com relativa indiferenç­a. Desde que faça a reforma da Previdênci­a e promova algum cresciment­o, o Posto Ipiranga será deixado em paz.

Na Justiça, Sergio Moro tem passado como gato sobre brasa. À revista IstoÉ, único meio a obter entrevista exclusiva do ex-juiz, ele declarou ter aceitado o cargo “para implementa­r uma agenda anticorrup­ção”. Como justifica, então, o fato de sentar-se ao lado dos nomeados Onyx Lorenzoni (Casa Civil), Teresa Cristina (Agricultur­a) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde), os três suspeitos de desvios? A pergunta não lhe foi feita e a resposta não parece interessar em demasia aos eleitores do futuro mandatário.

A grita em torno do titular da Educação, por outro lado, indica onde o calo aperta dentro da composição que elegeu o novo presidente. Ao trocar Ramos por Rodriguez, Bolsonaro sabe que comprará briga não só com a esquerda, mas com importante­s setores do establishm­ent cultural. Deve ter calculado, portanto, os ganhos que tal iniciativa lhe trará.

Movimento subterrâne­o que veio à tona em junho de 2013, no bojo de manifestaç­ões que abrigaram da extrema esquerda à extrema direita, certo macartismo tupiniquim chega agora à Esplanada dos Ministério­s. A votação do projeto de lei Escola sem Partido na Câmara dos Deputados, marcada para a próxima quinta, promete ser a estreia de uma longa guerra de valores. Tendo em vista o simbolismo envolvido, convém não subestimar o impacto desta primeira batalha.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil