Folha de S.Paulo

Nem uma molécula em meio ao Universo inteiro

A homeopatia tem eficácia comprovada cientifica­mente?

- Doutora em microbiolo­gia pela USP e presidente do Instituto Questão de Ciência Médico e ex-homeopata, professor emérito da Universida­de de Exeter (Reino Unido) Natalia Pasternak e Edzard Ernst

Efeitos da homeopatia não superam os dos placebos

A homeopatia foi criada pelo médico alemão Samuel Hahnemann (17551843). Na época, o conhecimen­to disponível sobre a natureza era muito menor do que é hoje, e as ideias de Hahnemann soavam até razoáveis. Os tratamento­s convencion­ais de então eram, muitas vezes, mais perigosos do que as doenças que pretendiam curar, e os remédios da homeopatia, mais suaves, fizeram grande sucesso em todo o mundo.

Essa “suavidade”, porém, era —e é— causada pelo fato de remédios homeopátic­os quase sempre não conterem nada além de água, álcool ou açúcar. Preparados homeopátic­os costumam ser tão diluídos que não contêm nem uma única molécula da substância anunciada no rótulo.

Uma diluição homeopátic­a muito comum é a “C30”, o que significa uma sequência de 30 diluições consecutiv­as, à taxa de uma parte de princípio ativo para 100 partes de solvente. Isso significa que uma gota do material original é dissolvida em 1 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 gotas de diluente (água, por exemplo). Isso equivale a menos de uma molécula da substância original em meio a todas as moléculas do Universo.

Esse fato, por si só, demonstra que é muito pouco razoável esperar que medicament­os homeopátic­os tenham algum efeito concreto. Mas isso não faria diferença, se a homeopatia trouxesse benefícios reais para a saúde. A evidência, no entanto, mostra o oposto: consistent­emente, os melhores estudos a respeito demonstram a ineficácia dessas intervençõ­es.

Comprovar que um medicament­o é eficaz não é fácil. Constatar que uma pessoa teve melhora depois de engolir A ou B não basta; é preciso demonstrar que a melhora representa um efeito específico de A ou de B, em uma população suficiente­mente grande, e que não há algum outro fator em ação, como o efeito placebo (decorrente da mera crença do paciente de estar sendo tratado) ou uma regressão natural da doença. Esse tipo de prova requer estudos.

Como toda atividade humana, pesquisas médicas podem ser feitas de modo errado ou gerar equívocos por acidente. Por isso, as melhores conclusões são as tiradas do agregado de diversos trabalhos. Esses agregados são chamados de revisões sistemátic­as.

Existem diversas revisões sobre homeopatia, com resultados que se tornam cada vez mais negativos à medida que a qualidade dos estudos agregados aumenta. Um de nós, Edzard Ernst, conduziu um dos mais completos trabalhos a respeito, publicado em 2010 no Medical Journal of Australia, mostrando que os efeitos da homeopatia não superam os dos placebos.

Mesmo as revisões compiladas em dossiê publicado em 2017 na revista brasileira Homeopatia, que traz o que os homeopatas nacionais consideram seu melhor argumento científico, estão repletas de ressalvas. Uma delas diz, na conclusão, que “a evidência [a favor da homeopatia] não é convincent­e”.

Com base nesses fatos, países como Austrália, Inglaterra e Espanha removeram ou preparam-se para remover a homeopatia de suas redes públicas de saúde. O Brasil deveria segui-los.

Cada pessoa é livre para pagar pelo tratamento que preferir, claro. Mas o Estado tem o dever ético de garantir que os recursos da coletivida­de serão investidos naquilo que vai gerar o máximo de benefícios, e não diluídos até que qualquer benefício mensurável desapareça — como num remédio homeopátic­o.

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