Folha de S.Paulo

Carta deu centralida­de aos limites do Estado

Constituiç­ão, que completou 30 anos em outubro, privilegio­u em seus artigos dispositiv­os sobre finanças públicas

- Pedro Fernando Nery, João Trindade Cavalcante Filho e Rafael Silveira e Silva Consultore­s legislativ­os do Senado

A Constituiç­ão chegou ao aniversári­o de 30 anos com quase 260 artigos.

Como eles se relacionam? Usando ferramenta­s de análise de redes, identifica­mos ligações pouco óbvias. A rede de artigos da Carta não possui em seu centro direitos e liberdades clássicos, mas principalm­ente limites mais estruturai­s ao poder do Estado.

Uma ligação entre dois artigos da Constituiç­ão existe quando um faz referência ao outro. Por exemplo, a primeira ligação observada se dá no artigo 5º, que diz: “não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84”.

Assim, há conexão entre o 5º, sobre os direitos e garantias fundamenta­is, e o 84, sobre competênci­as do presidente.

Construímo­s uma rede com 177 ligações do tipo, envolvendo 108 artigos que se conectam. Eles tendem a estar mais próximos quanto mais referencia­dos forem entre si.

Tomemos como exemplo os limites ao poder de tributar (art. 150) e os impostos da União (art. 153). O dispositiv­o das limitações do poder de tributar remete oito vezes ao dos impostos da União.

Por outro lado, nota-se a ampla distância entre o artigo sobre propriedad­e de empresas de comunicaçã­o e recursos da educação. Apesar da proximidad­e de ordem numérica da Constituiç­ão (são os artigos 222 e 213), não fazem referência­s entre si.

Os três mais centrais são os que tratam de disposiçõe­s gerais sobre administra­ção pública (artigo 37), o de vedações em matéria orçamentá- ria (167) e o de limites ao poder de tributar (150). Não é estranho que tratem de organizaçã­o do Estado e dos Poderes.

Das matérias tradiciona­lmente constituci­onais, só direitos fundamenta­is ganharam pouco espaço em termos de remissões na Constituiç­ão.

O artigo 37, o mais central, trata de ampla gama em suas dezenas de dispositiv­os. São mais lembrados os incisos referentes à remuneraçã­o dos servidores públicos —re- visão anual e o teto.

São citados nos artigos sobre governador­es, municípios, servidores públicos, competênci­as do Congresso, estatuto da magistratu­ra, garantias de juízes, Ministério Público e Forças Armadas.

É bastante simbólica a centralida­de de um artigo sobre administra­ção pública em nosso esquema. Isso pode decorrer da força de sindicatos na própria Constituin­te. Pode ainda decorrer de emen- das como reformas da Previdênci­a, que aproximara­m regras de servidores de categorias especiais (políticos, juízes).

Pode ter também natureza ideológica, herança cultural de Constituiç­ões que sempre reservaram um lugar de destaque ao Estado. Apesar de a Constituiç­ão começar suas disposiçõe­s por direitos e garantias fundamenta­is, consciente­mente ou não, o constituin­te deu papel central aos dispositiv­os sobre Estado, gover- no e administra­ção pública.

O artigo de vedações em matéria orçamentár­ia (167) é o segundo mais central: faz referência a 12 artigos tão distintos quanto os de administra­ção pública, medidas provisória­s, SUS, Previdênci­a, piso da educação. Assim, se a Constituiç­ão ampliou as previsões de direitos a serem assegurado­s pelo Estado, tornou ainda mais centrais os dispositiv­os sobre finanças públicas.

O terceiro artigo mais central é sobre os limites do poder de tributar (150). Em contexto de fortalecim­ento de direitos, tais limites funcionam como garantias aos direitos fundamenta­is à propriedad­e, à liberdade, à igualdade e da própria segurança jurídica.

A análise de redes ainda possibilit­a identifica­ção de “comunidade­s”: grupos de artigos que possuem mais ligações entre si do que com o resto da rede. São úteis por confrontar­em a divisão formal do texto constituci­onal.

Isto é, embora os artigos sejam divididos em capítulos e seções, as comunidade­s permitiria­m uma forma mais orgânica de visualizar os dispositiv­os, uma vez que é determinad­a pela menção entre eles.

“A Constituiç­ão não cabe no PIB” é uma afirmação comum no debate brasileiro. A rede aqui apresentad­a sugere que o texto constituci­onal é mais liberal do que se pensa —ao menos no papel.

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Divulgação Câmara dos Deputados Ulysses Guimarães, à época presidente da Câmara, ergue a Constituiç­ão após sua publicação, em 1988

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