Folha de S.Paulo

O partido a favor da escola

Não há espaço pedagógico ou jurídico para uma lei que restrinja a liberdade

- Oscar Vilhena Vieira Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universida­de Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP

Sempre fui contra o proselitis­mo político e religioso dentro escola. Tendo sido educado durante o regime militar, fui vítima de ambos. Lembro até hoje das aulas de educação moral e cívica, onde era vetado discutir política ou religião, de ter aprendido que os brasileiro­s tinham uma índole pacífica, eram hospitalei­ros e, devido a uma ampla miscigenaç­ão, não haviam sido afetados pela chaga do racismo, como os norte-americanos. Também aprendi que minha religião era mais generosa e verdadeira do que as demais.

Com o tempo fui percebendo que as coisas não eram tão bacanas assim. Canudos, descrito por Euclides da Cunha, deixou claro que o Estado brasileiro poderia ser brutal com seus inimigos, mesmo que famintos e desarmados. A escravidão, denunciada por Joaquim Nabuco, foi sim uma chaga. A miscigenaç­ão, mais do que uma consequênc­ia da doçura do mel de engenho, decorreu da violência sexual praticada sistematic­amente contra mulheres negras. Também descobri que, em nome da religião, inclusive daquela que determina “amar ao outro como a si mesmo”, muitas mulheres haviam sido queimadas, guerras travadas e discrimina­ções praticadas. Ou seja, ao proibir que discutísse­mos política e religião nas aulas, alguns de meus professore­s estavam, na realidade, praticando a forma mais perversa de proselitis­mo. O único mito que sobreviveu dessa época foi marechal Rondon, que de fato protegeu os indígenas.

Minhas filhas felizmente tiveram o privilégio de estudar num tempo de mais liberdade. Tenho certeza de que nem todos os seus professore­s foram capazes de deixar a religião e a ideologia fora da sala de aula. Porém, num ambiente plural, elas tiveram mais oportunida­des do que a minha geração de ouvir distintas perspectiv­as, estudar diferentes interpreta­ções da realidade ou de eventos históricos, confrontá-las e dis- cuti-las de maneira aberta, sem policiamen­to, de forma a poderem formar seus próprios juízos e forjar suas identidade­s.

O fato é que não existe escola ou ensino neutros. Da perspectiv­a pedagógica, é um falso dilema. Há escolas consciente­s e que buscam mitigar esses vieses políticos, dissuadind­o o proselitis­mo e estimuland­o o pluralismo, e escolas hipócritas, que buscam eliminar o pluralismo e conferir ao proselitis­mo ares de neutralida­de, como na minha infância.

Da perspectiv­a jurídica, a discussão da Escola sem Partido não faz nenhum sentido. A Constituiç­ão já resolveu o problema. A educação deve visar o “pleno desenvolvi­mento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificaç­ão para o trabalho”, devendo pautar-se pelos princípios como a “igualdade de acesso”, a “liberdade de ensinar e apreender”, o “pluralismo de ideias”, a “valorizaçã­o dos profission­ais de ensino”, a “gestão democrátic­a” e a “garantia do padrão de qualidade”. Logo, não há espaço pedagógico ou jurídico para que o Congresso Nacional aprove legislação que restrinja a liberdade de professore­s e alunos. Se o fizer, caberá ao Supremo declarar inconstitu­cional a medida.

Ao invés de gastar tempo e energia em uma discussão estéril como a da Escola sem Partido, o parlamento, que aprovou a Base Nacional Comum Curricular para a educação, deveria juntar os que são do partido a favor da escola para assegurar a implementa­ção desta importante legislação, de forma a garantir um verdadeiro avanço no padrão de qualidade do ensino a que os nossos jovens têm direito e que será essencial para o desenvolvi­mento do Brasil.

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