‘Muita gente nunca tinha ouvido falar da ABL’
Aos 71 anos, Conceição Evaristo lança primeiro romance após campanha para entrada na Academia Brasileira de Letras
Quando Conceição Evaristo fala, sua voz quase sempre sai em um tom baixo, modulada por um sotaque mineiro que costuma transmitir um quê de tranquilidade. Mas as palavras cortam.
“O primeiro efeito da minha candidatura à Academia Brasileira de Letras foi divulgar a própria existência da ABL. Muita gente nunca tinha escutado falar dela”, diz.
Nascida em Belo Horizonte, a escritora de 71 anos pleiteou neste ano a cadeira que havia pertencido ao cineasta Nelson Pereira dos Santos, morto em abril.
A iniciativa engajou o movimento negro e gerou uma manifestação popular que culminou em duas petições online, cada uma com mais de 20 mil assinaturas, defendendo que Conceição fosse a primeira mulher negra a se tornar imortal.
Embora tenha feito barulho na internet, a iniciativa não chegou a sensibilizar os imortais. A autora recebeu apenas um voto —com 22, o cineasta Cacá Diegues foi o escolhido para ocupar a cadeira número 7 da ABL, cujo patrono é Castro Alves, autor do poema “O Navio Negreiro”.
Agora, Conceição lança o seu primeiro romance após a eleição. “Canção Para Ninar Menino Grande”, que sai pela editora Unipalmares, narra a história do ferroviário Fio Jasmin. Mas, como é costume em sua obra, tudo gira sob um ponto de vista feminino. São as mulheres com quem o personagem se envolve amorosamente que descrevem o rapaz.
“Sinto que pode ser uma introdução à minha literatura, porque muitas pessoas que se engajaram na campanha da Academia ainda não tiveram a oportunidade de ler um livro meu. É um momento de primeiro contato”, acredita.
O título, que vinha sendo escrito nos últimos três anos, foi lançado na terça (20), feriado da Consciência Negra em São Paulo, durante o FlinkSampa, festival que reuniu autores na capital paulista para discutir a presença do negro na literatura e do qual a escritora foi a homenageada desta edição.
Para o futuro, o certo é que um novo romance e um livro de contos estão por vir, ainda sem prazo para publicação. Já uma nova candidatura à ABL não foi decidida. Em setembro, o sociólogo e cientista político Helio Jaguaribe morreu e deixou vaga a cadeira 11, que já pertenceu a Celso Furtado e a Darcy Ribeiro.
“Minha candidatura ajudou a questionar algumas regras de admissão na Academia. Para mim, a melhor maneira de ser eleito é apresentar a sua obra, seus livros. Se os imortais pressupõem outros caminhos, como fazer convites para jantar ou chamar não sei quem para fazer não sei o quê, acho que isso pouco tem a ver com a escrita”, afirma.
E arremata: os jogos políticos na instituição colaboram para que o lugar seja pouco diverso —para se ter uma ideia, apenas oito mulheres foram eleitas em 121 anos.
“Se a literatura representa a identidade de um povo e se a Academia deveria refletir a produção literária do país, isso está capenga dentro da ABL. Falta muito para simbolizar o que está sendo produzido no Brasil hoje.”
Decididamente Conceição Evaristo é uma rainha. No porte, na fala, na liderança, na generosidade. Conceição nos representa.
“Canção para Ninar Menino Grande”, novela que acaba de publicar, dá continuidade a sua obra, dedicada à negritude, em muito também difere. Insisto na palavra novela, pela admiração que essa prática literária merece.
Ainda que pouco praticada, são novelas diversas das mais importantes obras de nossos grandes autores: “O Alienista”, de Machado de Assis, “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água”, de Jorge Amado, as maravilhas de “Corpo de Baile”, de Guimarães Rosa.
Da mineirice em comum com Guimarães, Conceição traz a dicção peculiar com ausência de reflexivos como em “regozijou”, a eventualidade de algum traço fantástico em meio ao cotidiano e, sobretudo, uma espécie de carinho e simpatia pelos personagens que ficam, passam a fazer parte de nosso universo.
Aqui é o personagem Fio Jasmin, o atraente rapaz negro que carrega uma única frustração, a de não ter podido fazer o papel de príncipe na escola por ser negro. Merece atenção o nome do sedutor: um fio penetra, passa, atravessa, continua, segue adiante e junta; o jasmim perfuma.
A função principal desse homem é fecundar as mulheres, gerar filhos em moças bem criadas, todas com nome e sobrenome de famílias.
Neide Paranhos da Silva, cujo filho é concebido na época de frutos cheirosos como as laranjas; Pérola Maria, que Fio escolheu como mulher no civil e no religioso e que dele esperava apenas a garantia de engravidar; Juventina Maria Perpétua, para quem homens “não passavam de meninos grandes, que viviam agarrados às saias das mulheres em busca de proteção”.
Outras mais se sucedem, mulheres que não têm medo do prazer, com filhos que brincam juntos, indiferentes a quem é o pai.
Juventina, a Tina, é a mulher que compõe a partitura da “Canção para Ninar Menino Grande”. É a personagem que une as mulheres do romance, tornando-as “cúmplices e testemunhas” das histórias de amor, felizes ou infelizes.
Fio Jasmim poderia ser mais um dos cafajestes que atravessam as vidas das mulheres, afinal o pai, como ele ferroviário, significativamente chamado Máximo Jardim (e aqui fica impossível não lembrar de “Recado do Nome”, em que Ana Maria Machado analisa os nomes na obra de Guimarães Rosa) lhe ensinara que dores não vazam dos olhos dos homens.
Mas não o é, e se fosse tornaria a narrativa banal. Está aí a beleza do relato de solidariedade e amizade entre mulheres, na aceitação da importância da paixão, do sexo e daquilo que só as mulheres podem fazer, parir seus filhos.
Apenas ao final da novela, reaparece, de algum modo, discretamente, a escrevivência. Essa última obra de Conceição Evaristo é uma ficção diferente, mais solta em sua mestria ao lidar com o ficcional, em se apossar de tons de fábula que resgatam temas eternos e os modificam, em beirar o inevitável fantástico presente no dia a dia.
A autora permanece, sim, segura de suas convicções, como a importância da sororidade,da certeza de como é possível ser livre mesmo que o amor provoque dor no peito.
É a arte, então, como a música de Tina, que se mostra capaz de transformar a imaterialidade dessa dor estranha em acordes capazes de acordar ou adormecer seres humanos, bichos, plantas, toda a natureza, como nos diz Conceição.