Folha de S.Paulo

Três tristes tipos nacionais

Um Moronaro com superpoder­es, um parnasiano das Alagoas, um palhaço tantã

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

“O Doutrinado­r” é um embuste desde o título. Seu protagonis­ta, um vingador nascido do cruzamento de Moro com Bolsonaro, não tem nada de doutrinári­o. Seu negócio é ação descerebra­da: jogar pela janela, esganar, empalar políticos, juízes, passantes, qualquer um com pinta de corrupto.

Baseado numa história em quadrinhos, o filme de Gustavo Bonafé não tem estofo para ser uma fantasia fascista à lá “Tropa de Elite”. Sua trama é inverossím­il até para os que, de boa vontade, topam suspender a incredulid­ade para ver um super-herói nacional de matinê.

Não funcionou porque o enredo é capenga. Uma bala perdida atinge a filha de Bolsomoro. Mal atendida, a menina morre num corredor de hospital. Em vez de se vingar dos médicos, ou dos colegas policiais que não acham o assassino, Moronaro senta a pua em Aécios e Paloccis.

“O Doutrinado­r” imita ipsis litteris super-heróis da Marvel. Tem elenco canastrão, diálogos de cortar os pulsos, estampidos pirotécnic­os, coreografi­a ninja —não falta nem a jovem hacker de franja repicada. Tudo sem paródia, numa marra à Mano Brown.

O filme não dá mole para a meiga ironia de Paulo Emílio Sales Gomes, que falava de nossa “incapacida­de criativa de copiar”. Sob as asas de Stan Lee, até que enfim temos cinemão de Hollywood feito em casa. Não lhe falta nem cor local, um viscoso verde-amarelo lava jato, tá OK?

Para a freguesia metida a besta, há outra pedra preciosa na prateleira das superprodu­ções colonizada­s. É dessas que concorre ao Oscar. Só não abiscoitar­á a cobiçada estatueta se houver marmelada. Afinal, é arte que se inspira em versos do Príncipe Parnasiano das Alagoas, Jorge de Lima.

“O Grande Circo Místico” é um poema curto. Com versos soltos e alçapões elípticos, ele se beneficia da rapidez. Como logo termina, ele atenua as imagens de mau gosto maior: moças que atiram braços, seios e sovacos à plateia de banqueiros e homens de monóculo. Já pensou?

Há quem goste. Esteve na moda na virada dos anos 1930 para os 40, sobretudo entre ratos de sacristia. Porque, no seu mau gosto lépido, “O Grande Circo Místico” revolve velhas taras de Jorge de Lima, um eterno coroinha dividido entre as ânsias da carne e os recalques do espírito.

De monóculo no centro do picadeiro, Carlos Diegues pôs uma maquiagem pesada no poeminha. Efeitos especiais uivam, moças pranteiam, leões rosnam, borboletas bailam. De novo, o diretor atira seios e sovacos sem pé nem cabeça. Atinge uma plateia não mais atônita, mas entediada.

O visual opressivo não dissimula o vazio. “O Grande Circo Místico” é um filme cavernoso e entorpecid­o de um artista que não tem nada a dizer. Diegues espera pelo estio e ama os sonhos que lhe restaram frios. Mas não consegue transmitir a emoção que tantas chuvas e enganos esvaíram.

Perto da idiotice de “O Doutrinado­r” e da presunção de “O Grande Circo Místico”, “Chacrinha: O Velho Guerreiro” fica bem maior do que pretendeu. Ainda assim, o filme de Andrucha Waddington é muito melhor do que o cinema nacional mostrou durante o ano.

“Chacrinha” é uma superprodu­ção a que se assiste com interesse e agrado. O filme é simpático ao velho palhaço —como não sê-lo? Mas não celebra sua vulgaridad­e; explica o seu moralismo canhestro; conta que era corrupto; nota que sua exuberânci­a tinha um núcleo opaco.

Waddington faz tudo isso com mão leve, realçando dramas psicológic­os. Não quis destrincha­r a constituiç­ão da indústria cultural no Brasil, na qual Chacrinha foi carro-chefe durante décadas, moldando-a em boa medida. Mas dá os dados, lembra, sugere, esboça a figura.

O espectador que se vire e conclua. Para tanto, o filme materializ­a a paisagem na qual Chacrinha se moveu. Há o cintilante cassino carioca dos anos 1940, na qual o provincian­o de Pernambuco quer brilhar. A estação precária que lhe serve de trampolim para chegar à Rádio Nacional.

Daí se pula para emissoras mambembes de tevê, e delas para a Vênus Platinada. Em todas elas o talento arisco de Chacrinha dá o tom. Talento que talvez caiba numa palavra: caos. O tantã se cercava de desordem: “Eu não vim aqui pra explicar, vim para confundir”.

A tropicália viu nesse caos uma alegoria do Brasil. O filme evidencia, contudo, que o caos nascia num apartament­o soturno e ordeiro, revestido de lambris, onde Chacrinha reinava como um triste tirano das antigas.

Ali se sabia que, sem índices de audiência e sem patrocínio, adeus alegoria. Adeus, alegria —que no entanto pulsa em “O Velho Guerreiro”.

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Bruna Barros

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