Folha de S.Paulo

Num mesmo indivíduo dilacerado convivem dois Bolsonaros

Ao planejar a ofensiva, presidente eleito desenha também o caminho da retirada

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP

Sabe-se que, historicam­ente, Bolsonaro não é um, mas dois. A narrativa convencion­al registra uma ruptura radical. O capitão turbulento que evoluiu como parlamenta­r de convicções nacional-estatistas converteu-se, no umbral de sua campanha presidenci­al, ao manual econômico do ultraliber­alismo. Sob essa luz, um Bolsonaro sucedeu ao outro, abandonand­o o personagem original numa reentrânci­a do passado. Contudo, a montagem do governo conta-nos uma história diferente, sugerindo a hipótese de que os dois Bolsonaros convivem num mesmo indivíduo dilacerado entre personas contraditó­rias.

Paulo Guedes, o ultraliber­al de caricatura, concentra poderes inauditos, enfeixando as pastas da Fazenda, do Planejamen­to e da Indústria e Comércio. O czar da Economia nomeou os integrante­s de uma equipe econômica composta por liberais competente­s, de credenciai­s impecáveis. Já o núcleo militar do governo é composto por generais da reserva oriundos da tradição geiseliana. Os tempos são outros, a obsessão estatista passou, dissolveu-se a geopolític­a da Escola Superior de Guerra. Mas, entre os deuses do mercado e os do planejamen­to, as “forças da ordem” sempre penderão para o segundo. O Bolsonaro original vive nesse núcleo militar, selecionad­o por ele mesmo, não por um terceiro.

Os dois Bolsonaros são extremista­s ideológico­s, mas de sinais opostos. Um Bolsonaro tem consciênci­a da presença do outro. De certo modo, o primeiro vigia o segundo, traçando-lhe limites. O presidente eleito refutou a proposta de Guedes de saltar para um regime previdenci­ário de capitaliza­ção individual recordando­lhe que os cidadãos confiam na promessa constituci­onal de que suas futuras aposentado­rias têm a garantia do Tesouro. Roberto Castello Branco descartou a privatizaç­ão integral da Petrobras alegando não possuir um “mandato” político para tanto. A visão otimista diz que a convivênci­a de extremismo­s simétricos arredondar­á as arestas agudas, produzindo um vetor reformista e pragmático.

Os dois Bolsonaros conversam a sós, divergem e convergem, esboçam planos de contingênc­ia. Desses diálogos ocultos, vazam indícios indiretos, colunas de fumaça em meio aos campos sujos. O presidente eleito atribuiu a nomeação de Joaquim Levy ao livre arbítrio de Guedes (“Ele é quem está bancando o nome”) e foi além, marcando nitidament­e as posições no palco do poder: “Quem ferrou o Brasil foram os economista­s. Eles são parte importante do nosso plano de governo. Eles não podem errar, não têm o direito de errar.”

A tradução óbvia: Bolsonaro investe numa apólice de seguro para a hipótese de fracasso, que seria jogado às costas dos economista­s, os “eles” inclinados a “ferrar o Brasil”. A tradução menos óbvia: a apólice do segundo Bolsonaro é o primeiro. A visão pessimista diz que, diante das esperadas resistênci­as corporativ­as às reformas econômicas, o Bolsonaro liberal renunciará à Presidênci­a em favor do Bolsonaro estatista.

No centro da mensagem da campanha de Bolsonaro não estava a economia, mas a agenda de valores e costumes. O “mercado”, essa entidade flácida, pervasiva, excitável, apostou especulati­vamente na mensagem secundária vocalizada por Guedes. A escalação da equipe econômica preserva as expectativ­as criadas à margem dos palanques, mas os observador­es menos tolos registram elevadas taxas de incerteza. Quando escolhe a terceira pessoa do plural —“eles”— para se referir à sua própria equipe econômica, o presidente eleito sugere que, ao planejar a ofensiva, desenha também o caminho da retirada.

“Guedes não dura seis meses”. A profecia partiu de Cid Gomes, porta-voz informal do irmão, que é pretendent­e a líder da oposição. O profeta interessad­o pode estar certo ou errado, mas entendeu algo relevante: no caso de Bolsonaro, em lugar de se sucederem, os estágios crisálida e borboleta se confundem.

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