Folha de S.Paulo

Estádio da final foi palco de tragédia com 71 mortos há 50 anos

- Alex Sabino e Bruno Rodrigues

No violento futebol argentino, mortes ligadas ao futebol não são uma raridade. Desde 1922, quando foi registrado o primeiro óbito relacionad­o ao esporte, 328 pessoas perderam a vida em incidentes. Um ano concentra a maior parte das vítimas.

Em 1968, River Plate e Boca Juniors, finalistas da Copa Libertador­es neste sábado (24), às 18h, se enfrentara­m no Monumental de Nuñez em um jogo pelo torneio local que terminou 0 a 0. No fim da partida, uma confusão no portão 12, que dava o acesso aos torcedores do Boca, resultou na morte de 71 torcedores, pisoteados e asfixiados pela multidão que se formou no local.

O incidente, que em 23 de junho deste ano completou meio século, é considerad­o até hoje como a maior tragédia do futebol do país.

A Justiça nunca declarou um culpado ou esclareceu os motivos que resultaram na tragédia. Há diferentes versões para o que aconteceu naquela tarde de junho.

Uma delas, contada por várias testemunha­s, dá conta de que a saída dos torcedores boquenses estava bloqueada pelo portão, que não estava totalmente aberto, e pelas catracas nas laterais da escada, obstruindo o caminho.

“A isso se soma que a guarda de infantaria, em cima de cavalos com sabres e paus, amedrontav­a as primeiras pessoas que saíam”, relata Héctor Novera, 62, sobreviven­te da Porta 12, à Folha.

Empresário do ramo têxtil, Novera se diz “doente pelo Boca” e tinha 12 anos quando foi ao Monumental assistir à partida, acompanhad­o de um amigo da mesma idade.

Diz também que as luzes do acesso eram muito ruins. Com isso, torcedores que estavam no topo da escada não viam que outros paravam no portão e não conseguiam sair, resultando em uma espécie de avalanche.

“A escada estava úmida, os degraus estavam molhados. Alguns torcedores retrocedia­m por medo de serem reprimidos e golpeados [pela polícia]. À medida que as pessoas tentavam sair, iam caindo e foi-se produzindo uma pilha humana muito grande. Lamentavel­mente, quem estava embaixo dessa pilha morreu asfixiado”, conta.

Em 1968, a Argentina vivia sob ditadura militar, comandada à época pelo general Juan Carlos Onganía, que tomou o poder em 1966. Havia forte repressão por parte das autoridade­s, principalm­ente em manifestaç­ões populares como shows e jogos de futebol.

Naquele dia, Héctor Novera decidiu sair antes do apito final no Monumental. Seu amigo havia levado uma garrafada nas costas, arremessad­a pelos próprios torcedores do Boca que tentavam atingir os do River nas cadeiras do setor inferior. Com isso, deixaram o jogo antes da maioria.

“Tive muita sorte, porque se esperasse um ou dois minutos mais, podia ser perfeitame­nte um dos que ficou na pilha de gente. Éramos pequenos, com pouca força física”, afirma.

A tragédia, claro, deixou no jovem a lembrança daquele 23 de junho. Mas ele conta que retornou ao Monumental de Nuñez muitas vezes para ver o clássico —o que não acontecerá neste sábado, pois as torcidas visitantes estão proibidas no país desde 2013.

Familiares de vítimas chegaram a entrar na Justiça, pedindo ressarcime­nto. O River foi punido em 200 milhões de pesos da época. Clubes como Barcelona (ESP), Universida­d de Chile, além da liga paraguaia, se ofereceram para amistosos em benefício das famílias, que não acontecera­m.

A torcida do Boca passou a cantar durante as partidas uma música em referência ao episódio, cuja letra dizia, em tradução livre: “Não havia portão, não havia catraca, era a ‘cana’ (gíria para polícia) que batia com cassetete”.

As queixas apresentad­as pelos familiares lesados diante da Corte Suprema foram arquivadas. Em agosto de 1969, a maioria desistiu do recurso. Só dois familiares insistiram e receberam 140 mil pesos da AFA (Associação do Futebol Argentino) e do River Plate.

Hoje, a Porta12, que dá para a Avenida Figueroa Alcorta, mudou de nome. Chama-se Porta L. Da tragédia, só há uma pequena lembrança. Uma placa, localizada ao lado do acesso, que foi colocada há dez anos e diz: “Em memória das 71 vítimas da Tragédia da Porta 12. 1968 - 23 de junho - 2008”.

A homenagem foi um pedido de Diana Von Bernard, irmã de Guido, que tinha 20 anos, e morreu no Monumental. Po rém, o nome dele, assim como o das outras vítimas, não ganhou menção na placa.

“A vida, para muitos aqui na Argentina, não tem o valor que deveria ter. As famílias que perderam seus entes queridos e amigos têm uma ferida que não se recupera. Como sociedade, não aprendemos”, completa Héctor Novera, que sobreviveu para contar o que outros não puderam.

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Eitan Abramovich/AFP Portão L do estádio do River, em Buenos Aires, onde dezenas morreram

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