Folha de S.Paulo

Agressivid­ade contra repórteres tira prazer do ofício, diz ex-Globo

- Laura Mattos

Tonico Ferreira, 71, tinha mais dois anos de contrato na Globo e chegaria perto de completar 40 na emissora, mas decidiu sair em abril.

É verdade que queria mais tempo para a família, para estudar e viajar, como disse em carta à direção de jornalismo.

Mas agora, passada a eleição, admite que outra razão pesou: o clima político e a agressivid­ade contra jornalista­s.

Qualquer cobertura com multidão, diz, tornou-se um risco para os repórteres, principalm­ente os de TV. É algo que “vai tirando o prazer da profissão” ouvir as pessoas xingando a imprensa, a Globo, colocando cartazes na frente de jornalista­s ao vivo, como aconteceu com ele quando cobria a prisão do ex-ministro José Dirceu, em 2015.

À Folha ele relembra os 51 anos de um trabalho em que acompanhou de perto a história do Brasil e participou de coberturas internacio­nais. Também revela a ideia de criar uma associação de defesa à liberdade de imprensa.

Fotógrafo aéreo

Sou de Santos. Meu pai se separou da minha mãe quando eu tinha 6 anos. Teve encontros comigo por dois anos, depois nunca mais o vi. Voltei a vê-lo após 50 anos. Ele estava doente, em Atibaia. Conversamo­s por duas horas. Vim a São Paulo pensando em como ajudá-lo. Quando cheguei, recebi um telefonema dizendo que tinha morrido. Morreu 45 minutos depois que saí. Era fotógrafo aéreo.

José Dirceu

Entrei na Faculdade de Arquitetur­a e Urbanismo, da USP, em 1966. Todo mundo era comunista. Quem não era fingia ser [risos]. Fui fazer jornais de esquerda como diagramado­r. O primeiro foi o Amanhã, do grêmio da Faculdade de Filosofia. Quando o jornal acabou, eu tinha direito a três salários, mas ganhei um. O grêmio não tinha dinheiro. O Zé Dirceu fez pedágio na rua, voltou com um saco de dinheiro e nos pagou.

Censura

A primeira vez que vi censor foi em 13 de dezembro de 1968, dia do AI-5. Chegaram dois na Folha da Tarde [onde Ferreira trabalhava]. Depois passaram a mandar instruções por telex. Quem desobedece­u foi submetido a censura prévia.

Saí da Folha da Tarde, passei pela revista Realidade, até criar um jornal para tentar ter liberdade, o Opinião, em 1972, no Rio. Desde 1967, quando parte da esquerda foi para a luta armada, estava fácil para o regime enfrentar esses grupos. Foi só sair matando, torturando, prendendo. Fizemos o jornal com empresa formal, endereço, tudo aberto, para enfrentar a ditadura no campo que é pior para ela, o democrátic­o.

Logo tivemos censura prévia. Eu entregava o material e voltava com rabiscos em palavras, trechos, artigos. Uma vez um major disse: “Ih, cortaram muito, não vai sair jornal. Peguem em armas e vamos atrás de vocês”. Respondi: “Não, vou para a Redação e trago mais material hoje ainda”.

Sem cigarro

Em 1975 entrei no projeto de um jornal de oposição, o Movimento, que fizemos por cinco anos. A esquerda foi se dividindo, vários jornais surgiram e todos morreram. Eu tinha dois processos pela Lei de Segurança Nacional, só não fui condenado porque veio a anistia. A esquerda é muito sectária e me enchi daquilo, das dificuldad­es. Deixei de fumar porque não tinha dinheiro para comprar cigarro, olha que bom! Recebi um convite para ir para a Band e logo depois para a Globo, em 1981.

Diretas-Já

Na Globo, havia uma luta di- ária contra a censura. As TVs são concessões do governo, é fácil pressioná-las. Cobram a Globo por não ter apoiado de início as Diretas-Já, mas a pressão era enorme. Eu cobri o primeiro ato em São Paulo, no Pacaembu. Depois veio a proibição na empresa.

Isso não impediu o movimento de crescer, também em cima da Folha [que apoiou as Diretas]. As pessoas acham que a Globo é capaz de fazer presidente, derrubar, mudar a política. Se fosse assim, as Diretas não teriam ido para a frente. Claro que quando entra, alavanca, mas não tem toda essa força que pensam.

Quando a gente conseguiu colocar algo das Diretas no ar, mesmo sendo aquela matéria torta, falando mais sobre o aniversári­o de São Paulo, comemorado naquele dia do comício, vibramos. Como o movimento cresceu, dali para a frente foi liberado.

Agressivid­ade

Nos últimos tempos, toda manifestaç­ão é um problema de segurança para os jornalista­s, principalm­ente de TV, conhecidos. Pode ser do Bolsonaro, do PT, é pressão enorme para as equipes na rua. Quando junta gente, se você cai, fica difícil, todo mundo dá um pontapé anônimo.

Fui muito importunad­o quando cobri a prisão do Zé Dirceu. Havia um pessoal do PT, que até me conhecia. Eu disse: “Gente, por favor, deixa só a gente entrar ao vivo”.

Quando entrei no Jornal Nacional, colocaram cartazes, eu tentava falar e não paravam de gritar. Sempre nos abordam dizendo “a Globo mente, fora Rede Globo” etc. Temos que tentar negociar, não podemos sair correndo que é pior.

O ambiente não é bom e sofremos com isso. É chato trabalhar assim, todo mundo bate em você. A sociedade está dividida, raivosa, e os jornalista­s são intimidado­s. Isso começa a tirar o prazer da profissão. Passamos a mandar produtores e não repórteres conhecidos para alguns eventos, filmar com celular e não com grandes equipament­os.

Quando houve o caso da Patrícia [Campos Mello, repórter especial da Folha, ameaçada nas redes sociais após revelar que empresário­s impulsiona­ram disparos por WhatsApp contra o PT], fiquei pensando sobre o quanto estamos fracos na nossa defesa.

Temos um sindicato capaz de dizer que [determinad­os ataques] estão certos. Quem nos defende são as empresas. Estou pensando em fazer alguma coisa, uma associação. Estamos vulnerávei­s e precisamos de algo forte, supraparti­dário, defendendo a liberdade de imprensa.

Esquerda e direita

Esperam que a Globo, a Folha, sejam de direita ou esquerda, e não serão. São mais de centro, com seus princípios. Por que não fazem seu próprio jornal ou TV?

Quando eu fazia imprensa alternativ­a, achava que um daqueles jornais se tornaria forte com a redemocrat­ização, como aconteceu com o Le Monde, na França, com o El País, na Espanha.

Mas não sobreviveu nenhum e não surgiu nada no governo do PT, quando havia condições. Quem é o jornal de esquerda no Brasil? As sucursais do El País, do Guardian [inglês]. É lamentável que tenhamos que ter uma imprensa estrangeir­a para representa­r a opinião de parte da população. Também seria bom haver um de direita.

No debate é que vamos nos acertar. A direita estava dentro do armário, e a imprensa errou em não perceber isso, que havia um Brasil indignado, uma classe saiu da pobreza, chegou em cima e não achou nada, só violência, políticos roubando. Isso passou batido, a imprensa tem que pensar se não está distante da população.

“O ambiente não é bom e sofremos com isso. É chato trabalhar assim, todo mundo bate em você. A sociedade está dividida, raivosa, e os jornalista­s são intimidado­s. Isso começa a tirar o prazer da profissão Tonico Ferreira jornalista

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Divulgação O repórter Tonico Ferreira durante cobertura no Haiti, em 2004

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