Folha de S.Paulo

Ídolo de Bolsonaro, Caxias tem aura ambígua

Duque que inspira presidente eleito passou à história como herói pacificado­r, mas também foi descrito como genocida

- Naief Haddad

Um busto dourado de Duque de Caxias recebe aqueles que visitam o panteão dedicado ao mais celebrado dos militares brasileiro­s. Passada a primeira sala do monumento, no centro do Rio, o visitante pode observar o túmulo de mármore branco com os restos mortais de Luiz Alves de Lima e Silva (1803-1880), escolhido como o patrono do Exército em 1962.

Ali, há uma reprodução de “A Batalha do Avaí”, do pintor Pedro Américo —o original está no Museu de Belas Artes, também no Rio.

Na pintura sobre um dos principais conflitos da Guerra do Paraguai, Caxias aparece montado em um cavalo branco e demonstra sobriedade ao orientar um militar ao seu lado, mesmo tendo ao redor brasileiro­s e paraguaios se engalfinha­ndo em uma disputa sangrenta.

Nos traços de Américo, Caxias surgia como herói, mas Lima e Silva não gostou. “Desejava saber onde o pintor me viu de farda desabotoad­a; nem no meu quarto!”, disse ele, segundo a historiado­ra Lilia Schwarcz em livro a respeito da famosa pintura.

É esse homem do século 19, simbolizad­o tanto pela bravura quanto pela extrema disciplina, que o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), exalta há décadas. Os elogios ganharam visibilida­de depois do triunfo do deputado federal no segundo turno, em 28 de outubro.

Naquele domingo, após a confirmaçã­o da vitória, Bolsonaro disse: “Não sou Caxias, mas sigo o exemplo desse grande herói brasileiro. Vamos pacificar o Brasil e, sob a Constituiç­ão e as leis, vamos construir uma grande nação”.

Uma semana depois, voltou a mencionar seu ídolo. “Queremos, sim, usando o meu lado militar, seguir os passos de Caxias, o pacificado­r.”

Para o historiado­r José Murilo de Carvalho, autor de “Forças Armadas e Política no Brasil” (ed. Zahar), não é difícil explicar a recorrênci­a das citações. “Bolsonaro foi militar, Caxias é o patrono do Exército e figura nacional respeitada por todos. Virou até sinônimo de pessoa dedicada e respeitado­ra da ordem. Citá-lo só atrai simpatias”, diz.

O fluminense Lima e Silva se notabilizo­u como militar ainda jovem. Em 1822, com a independên­cia do Brasil, ingressou no Batalhão do Imperador, um espécie de tropa de elite do Primeiro Reinado. Tinha então 19 anos.

Depois da abdicação de dom Pedro 1º, em 1831, os conflitos se difundiram pelo país. Segundo Carvalho, foram ao menos 22 revoltas de grande porte entre 1831 e 1848.

Lima e Silva comandou a repressão de alguns dos maiores desses movimentos de insurreiçã­o, como a Balaiada (1838 a 1841), no Maranhão; a revolta liberal de São Paulo (1842); e a Revolução Farroupilh­a (1835 a 1845), no Rio Grande do Sul.

Entre essas ações, a historiado­ra Adriana Barreto de Souza, autora de “Duque de Caxias - O Homem por Trás do Monumento” (ed. Civilizaçã­o Brasileira), ressalta a participaç­ão dele na Balaiada.

Como ela lembra, esse foi um movimento que, em sua fase inicial, uniu fazendeiro­s, caboclos e quilombola­s, um arranjo que deixou a elite da corte imperial indignada.

A vitória sobre os balaios rendeu a Lima e Silva a promoção a general. Também vem dessa época a alcunha de “pacificado­r”. Para homenageá-lo, Gonçalves de Magalhães, que havia sido secretário de governo no Maranhão, escreveu “Ode ao Pacificado­r”.

A maior glória veio na Guerra do Paraguai, que se estendeu de 1864 a 1870. Lima e Silva assumiu a liderança das tro-

pas brasileira­s em 1866 e, dois anos depois, passou a comandar as forças aliadas —Brasil, Argentina e Uruguai se uniram para enfrentar o Paraguai.

“Caxias era, antes de tudo, um estrategis­ta. Mas, uma vez em combate, não hesitava [em atuar no campo de guerra]”, diz Carvalho. Para o historiado­r, um episódio que simboliza bem sua bravura é a batalha de Itororó, em 1868.

Uma ponte estreita sobre o rio Itororó estava sob a mira do Exército paraguaio, levando à morte os soldados brasileiro­s que tentavam atravessá-la, até que o comandante, aos 65 anos, tomou a frente do combate, conquistan­do a área.

Segundo o engenheiro militar Dionísio Cerqueira, presente no conflito, foi nesse momento que Caxias disse a célebre frase: “Sigam-me os que forem brasileiro­s”.

Caxias liderou as tropas até dominar Assunção, em janeiro de 1869. Ao voltar ao Brasil, ganhou o título de duque, o mais alto da nobreza brasileira —durante o período imperial, foi a única pessoa a receber a honraria.

Da morte de Caxias, em 1880, à década de 1960, prevalecer­am os textos laudatório­s sobre ele, baseados na biografia escrita pelo padre Joaquim Pinto de Campos.

Durante a ditadura militar, ganhou força uma corrente revisionis­ta, para a qual Caxias era quase um genocida.

“A pesquisa histórica se desenvolve­u muito nas últimas duas décadas, o que nos permite escapar dessas polarizaçõ­es, sempre muito apaixonada­s”, observa Adriana Barreto.

Segundo ela, a disciplina não era um atributo militar essencial no Brasil no século 19. “A academia militar em que ele estudou não era uma instituiçã­o militariza­da. Os alunos não usavam uniforme, civis estudavam junto com militares, não havia regulament­o disciplina­r. O Caxias extremamen­te disciplina­do é invenção do Exército do século 20 para atender aos seus interesses políticos e institucio­nais.”

Por outro lado, pondera a historiado­ra, tratá-lo como genocida “é a resposta também política de uma geração que procurava atacar a ditadura militar, denegrindo a imagem de seu patrono. Até onde a pesquisa nos permite ver, ele não foi um exterminad­or cruel de paraguaios e negros”.

Na “Ode ao Pacificado­r”, Gonçalves de Magalhães exalta “a lúcida razão” de Caxias. Resta saber se, nesse aspecto, o presidente Bolsonaro será capaz de seguir seu ídolo.

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Naief Haddad/Folhapress Busto de Duque de Caxias no panteão que guarda os restos mortais do militar, no centro do Rio

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