Folha de S.Paulo

Perseguido­s, LGBT recebem refúgio no Brasil

Maioria vem de nações africanas que criminaliz­am relações homossexua­is, em alguns casos com pena de morte

- Flávia Mantovani

Em Moçambique, seu país de origem, Lara Lopes, 34, tentou se manter “discreta” durante anos sobre uma parte importante de si mesma: sua orientação sexual. Ainda assim, foi agredida por desconheci­dos na rua e chegou a ser presa —foi colocada em uma cela com homens.

Também foi alvo de piadas na universida­de e, por mais que se esforçasse, não conseguia emprego. “Percebi desde criança que era diferente. Gostava de usar cabelo curto, roupas de rapaz, de jogar futebol”, diz. “Na juventude, piorou. Tive namoradas, mas tudo escondido. Venho de uma família conservado­ra. Um tio mais agressivo ameaçou me bater várias vezes”, lembra.

Mais do que um tabu, as relações homossexua­is eram crime em Moçambique até 2015. Em 2013, Lara se cansou e resolveu vir para São Paulo. “Eu não via nenhuma perspectiv­a lá. Aí assisti a uma novela brasileira que mostrava um casal de lésbicas, fui pesquisand­o e vim para cá sem me despedir de ninguém”, relata.

Lara hoje tem o status de refugiada, que obteve após relatar as ameaças que sofreu em seu país por ser lésbica.

Segundo um levantamen­to inédito obtido pela Folha ,o Brasil recebeu, em seis anos, 369 solicitaçõ­es de refúgio relacionad­as a orientação sexual ou identidade de gênero.

A pesquisa, feita pelo Acnur (Alto Comissaria­do das Nações Unidas para os Refugiados) e pelo Conare (Comitê Nacional para os Refugiados, ligado ao Ministério da Justiça), baseou-se em dados do período de 2010 a 2016.

A partir de 2017, com o aumento expressivo de pedidos após a chegada de milhares de venezuelan­os, o grupo interrompe­u a filtragem das novas solicitaçõ­es, mas continuou contabiliz­ando, até julho de 2018, as decisões sobre os processo em andamento.

Muitos desses pedidos (195) ainda estão pendentes, mas, dos já analisados, a maioria teve resposta positiva: 134. Apenas 20 foram negados e outros 20 foram arquivados.

O país é o quarto do mundo a fazer esse tipo de recorte de dados públicos, depois de Bélgica, Inglaterra e Noruega, afirma Luiz Fernando Godinho, porta-voz do Acnur. Nesta quarta-feira (28), será lançada uma plataforma online que reúne essas informaçõe­s.

“É importante garantir o acesso a esses dados para fomentar a pesquisa e incentivar a proteção a essas pessoas, que têm necessidad­es específica­s”, diz Godinho.

Segundo o levantamen­to, 89% das solicitaçõ­es foram feitas por pessoas vindas de países africanos. Os cinco primeiros da lista (Nigéria, Gana, Camarões, Serra Leoa e Togo) criminaliz­am as relações entre pessoas do mesmo sexo –atualmente, há mais de 70 países no mundo nessa situação. Em alguns estados do norte da Nigéria, a punição é a pena de morte.

Pela análise, a maior parte dos solicitant­es (87%) são homens cisgênero, ou seja, que se identifica­m com seu gênero de nascimento. Houve dois registros de mulheres transexuai­s, ambas de Angola.

Em relação à orientação sexual, gays são a maioria (65%), lésbicas são 10% e bissexuais, 3%. Há também heterossex­uais que sofreram preconceit­o por serem percebidos como LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuai­s) ou por trabalhare­m com ONGs de defesa de direitos.

Foram contabiliz­adas apenas solicitaçõ­es nas quais o motivo de pedido de refúgio está relacionad­o à orientação sexual ou à identidade de gênero. Segundo o Acnur, provavelme­nte há um universo maior de refugiados LGBT em território brasileiro, até porque muitos não se sentem seguros para declarar sua orientação sexual nas entrevista­s.

No total, o Brasil reconheceu cerca de 10 mil refugiados de 2007 a 2017. O número de solicitaçõ­es entre 2011 a 2017 foi de 126 mil.

A convenção mundial e a legislação brasileira sobre refugiados reconhecem esse direito a pessoas que sofrem “fundado temor de perseguiçã­o” devido à sua opinião política, raça, nacionalid­ade, religião e grupo social. A interpreta­ção da ONU, seguida pelo Brasil, é que refugiados LGBT se encaixam no último grupo.

“Apesar de historicam­ente essa população sofrer perseguiçã­o no mundo, a análise desses pedidos de refúgio é relativame­nte nova. Só a partir de 2000 o Acnur começou a emitir diretrizes sobre o tema”, diz Godinho.

O primeiro caso de refúgio ligado a orientação sexual no Brasil foi concedido em 2002 a um casal de homens colombiano­s que vivia em uma área com muita violência homofóbica praticada por grupos armados.

Em alguns países, homossexua­is podem receber chibatadas, ser multados, detidos e ser condenados à prisão perpétua e até à pena de morte.

Para o antropólog­o Vitor Lopes Andrade, que estudou o tema em São Paulo, na Espanha e atualmente faz pesquisa na Inglaterra, o Brasil é avançado em relação a outros países nos processos formais de acolhiment­o desse público. “Tem lugar que exige provas como fotos e vídeos íntimos. Já o Brasil se baseia na narrativa da pessoa”, diz.

A principal dificuldad­e, aponta, é na integração. Muitos sofrem preconceit­o dentro dos centros de acolhida, por exemplo –tanto que, em Manaus, foi criado neste ano um abrigo específico para refugiados LGBT, o primeiro do país.

“A falta de redes de apoio é uma questão central. Normalment­e os imigrantes se baseiam no contato com pessoas da mesma nacionalid­ade, mas esses refugiados são discrimina­dos pelos conterrâne­os por sua orientação sexual”, observa.

Para Andrade, deve haver diálogo entre ONGs voltadas para imigrantes e para o público LGBT, além de treinament­o em entidades que atendem essas pessoas. “Elas precisam se sentir seguras para contar sua história. Já houve problemas de chamarem um intérprete do mesmo país e haver discrimina­ção durante a entrevista, por exemplo.”

Para a moçambican­a Lara, a vinda da namorada, dois anos depois dela, ajudou em sua adaptação ao Brasil. O casal está junto há oito anos. “Não quero faltar ao respeito com ninguém. Só quero formar uma família, conseguir um trabalho”, afirma ela, que está concluindo uma especializ­ação em tecnologia da informação. “A diferença é que aqui a gente não precisa mentir.”

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Bruno Santos/Folhapress A refugiada moçambican­a Lara Lopes, 34, que foi agredida e presa pela polícia em seu país por ser lésbica e há cinco anos veio ao Brasil
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