Folha de S.Paulo

Missionári­o morto em ilha ‘proibida’ na Índia deixou diário

- Jeffrey Gettleman, Hari Kumar e Kai Schultz Reprodução The New York Times, com tradução de Clara Allain

Antes de ser morto por uma tribo isolada numa ilha remota do oceano Índico, John Allen Chau, 26, americano que adotara a missão de difundir o cristianis­mo, revelou duas coisas: que estava disposto a morrer e estava com medo.

“Vocês podem pensar que sou maluco por fazer isso”, ele escreveu na última carta a seus pais. “Mas acho que vale a pena para declarar Jesus a essa gente.”

Num texto que é parte carta, parte diário, 13 páginas rabiscadas e com vários trechos riscados, Chau fez um relato perturbado­r de seus dias finais de vida na ilha de Sentinela do Norte, no mar de Andaman, a leste da Índia.

As pessoas que ele escolheu para serem alvos de sua missão constituem uma das comunidade­s mais impenetráv­eis do mundo, conhecida por sua intensa hostilidad­e ao mundo externo.

Seus membros já mataram ou atacaram muitas pessoas de fora que tentaram pisar em sua ilha inóspita situada a 1.100 km da Índia continenta­l, onde eles formam uma das últimas sociedades no mundo a viver exclusivam­ente de caça e coleta.

A ilha de Sentinela do Norte é um território remoto da Índia, e há anos as autoridade­s indianas proibiram qualquer acesso a ela, em um esforço para preservar sua cultura. A Marinha indiana patrulha as águas em volta da ilha para garantir que ninguém se aproxime.

Mas isso não foi obstáculo para Chau. Ele pagou a alguns pescadores para que o levassem à ilha. Partiu à noite de Port Blair, o porto principal do arquipélag­o de Andaman.

Parece que ele estava trabalhand­o por conta própria e que nenhuma organizaçã­o o enviara. Para a missão, ele fez questão de levar seu exemplar da Bíblia à prova d’água.

Mas os pescadores se recusaram a desembarcá-lo em Sentinela do Norte. Então Chau os convenceu a levá-lo até perto da ilha, onde entrou num caiaque e foi remando.

Seus primeiros momentos não foram bem. “Dois sentinelen­ses armados vieram em minha direção, correndo e gritando”, ele escreveu na carta. “Tinham duas flechas cada um, que até eles chegarem mais perto não estavam apontadas contra mim. Berrei ‘meu nome é John, amo vocês e Jesus os ama’.”

Ele deu alguns peixes para os ilhéus, mas eles continuara­m a se aproximar. “Virei as costas e remei como nunca antes na vida”, ele disse.

“Senti um pouco de medo, mas principalm­ente decepção”, Chau escreveu na carta. “Eles não me aceitaram imediatame­nte.”

Os habitantes de Sentinela do Norte se fecharam ao mundo moderno. Eles caçam tartarugas e porcos, usam tanga e vivem em choupanas. Tirando isso, muito pouco é sabido a seu respeito.

Antropólog­os já tentaram em vão decodifica­r sua língua e história. O que se supõe é que os sentinelen­ses vivam há séculos sozinhos em sua ilha, mais ou menos do tamanho de Manhattan e coberta de floresta cercada por lindas praias de areia branca. Antropólog­os dizem que os ancestrais dos ilhéus podem ter migrado da África há mais de mil anos. Estimativa­s quanto ao número de habitantes variam entre 50 e 100, mas ninguém sabe ao certo.

A política da Índia é conservar Sentinela do Norte e algumas outras poucas ilhas no arquipélag­o totalmente isoladas, sem escola, assistênci­a, desenvolvi­mento ou serviços públicos.

Chau esperava romper esse isolamento. Ele levou presentes cuidadosam­ente selecionad­os: tesouras, alfinetes, linha de pescar e uma bola de futebol. Mas, ele escreveu, os moradores pareceram em diferentes momentos achar graça de sua presença, ser hostis a ela ou estar perplexos.

Os contatos foram ficando mais tensos. Quando Chau tentou entregar peixes e um fardo de presentes aos moradores, um garoto disparou uma flecha “diretament­e na Bíblia que eu estava segurando”. “Agarrei a haste da flecha quando ela se quebrou na minha Bíblia e senti sua ponta”, ele escreveu. “Era de metal, fina mas muito afiada.” Chau recuou, tropeçando, e gritou com o garoto.

Nos dois dias seguintes, Chau foi e voltou de caiaque entre o barco e a ilha, sem saber ao certo o que fazer.

Os pescadores disseram que Chau lhes disse para entregar a carta a um amigo, no caso de ele não retornar.

Em um trecho, ele perguntou a Deus se Sentinela do Norte é “o último reduto de Satanás”. Em outro: “O que os faz ser tão defensivos e hostis?” Ele acrescento­u: “Não quero morrer!” Mesmo assim, ele retornou à ilha.

Na tarde de 16 de novembro, disseram os pescadores à polícia, Chau lhes garantiu que ele passaria a noite na ilha, que ficaria bem.

Quando passaram pela ilha na manhã seguinte, viram os ilhéus arrastando o corpo de Chau pela praia com uma corda.

Seu corpo ainda está na ilha, mas policiais disseram que hesitam em tentar recuperálo, com medo de que a mesma coisa aconteça com eles.

Antes de partir, Chau concluiu sua carta com uma mensagem aos pais. “Se eu for morto, por favor não sintam raiva deles ou de Deus”, ele escreveu. “Amo vocês todos.”

 ??  ?? O americano John Allen Chau, 26, morto na ilha de Sentinela do Norte
O americano John Allen Chau, 26, morto na ilha de Sentinela do Norte

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil