Folha de S.Paulo

Cadeira de rodas na malha fina

A razão da presepada é que o Leão rosnou pelo valor elevado do equipament­o

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância jairo.marques@grupofolha.com.br

Neste ano, a Receita Federal resolveu reter uns tostões da minha restituiçã­o do Imposto de Renda de trabalhado­r assalariad­o. E não foi porque declarei um curso de culinária no Himalaia ou porque lancei gastos com tratamento de levantamen­to de papada, foi porque comprei uma cadeira de rodas para acomodar a bunda.

A razão da presepada é que o Leão rosnou pelo valor elevado do equipament­o. Não é de se estranhar, uma vez que os preços das coisas na savana devem estar menos selvagens que os daqui. Some-se a isso o fato de que quem não precisa não faz a menor ideia do caminhão de dinheiro que é preciso levar para comprar uma boa cadeira de rodas.

Como cidadão que preza a honestidad­e, tentei falar com o seu Leão. Mandei email explicando o fato e dizendo que poderia provar à realeza que o produto era mesmo mais caro que pão de queijo em aeroporto. Falei também que era “complicoso”, como dizia minha tia Filinha, um cadeirante transitar por prédios velhos e sem acesso, como os da Receita, e que se pudesse resolver online seria “maraviwond­erful”.

O danado me respondeu rugindo que, “difinitiva­mente”, não seria possível resolver assim, pelas “internets”, que seria necessário ficar frente a frente com alguém que pudesse analisar se, de fato, eu não estava fazendo malandrage­m e sonegando tostões ao nosso fragilizad­o erário de onde retiram toneladas de cadeiras de rodas todos os anos em formato de remessas amoitadas de dólar ao exterior.

O que me deixa de pá virada, nesse caso, é que a Receita, em seus modernos computador­es, tem em seu histórico toda a minha fácil vida “malacabada”. Sabe de minhas necessidad­es básicas para seguir atrás de meritocrac­ias, sem encher o saco, e não dependendo de famigerada­s políticas públicas.

Catei uma pastinha, coloquei os documentos e fui. Na primeira unidade, o motorista do táxi só pode parar bem longe da portaria. Fui catando cavaco por calçadas esburacada­s até que um bombeirão espadaúdo me ajudou a chegar a uma sala onde havia uma mocinha que me olhou com cara de “o que você perdeu aqui, meu filho?”.

Mal me deixou falar e me despachou. “Não é aqui, não. É na Consolação”. “Vai se consolar na Consolação”, pensei.

Chegando lá, um prédio com acessos totalmente fora de padrões legais, dois meninos com jeito de estagiário­s me atenderam. Para ser justo, eles pegaram as orientaçõe­s com um moço com cara de quem estudou muito para concurso, numa baia imediatame­nte ao lado da que eu estava.

— O sr. tem como provar que precisa dessa cadeira de rodas?, me perguntou o garoto.

É nessas horas que seguro firme na mão de nossa senhora da bicicletin­ha: será que ele quer que eu me arraste no chão e peça moedas ou basta mostrar minhas canelas secas?

Não teve jeito de resolver na hora, mesmo com a nota fiscal em punho e o aleijado “in loco”. O atencioso menino me disse que, no ano que vem, vou ser chamado oficialmen­te e aí tento provar novamente que não dei o golpe. O processo deve durar quatro anos, segundo ele.

Pensei em mandar tudo às favas e retirar a cadeira da declaração, mas meu amigo Marcão, que entende o sabor de cada baforada do Leão, me fez prometer que defenderia minhas migalhas até o fim.

Iguais a mim, milhares de outros brasileiro­s serão questionad­os pela compra de dentaduras, andadores, aparelhos auditivos e até estadias na UTI. Defender os recursos da nação é inquestion­ável, mas tenho certeza que é possível agir pelo bem do país com menos humilhação e mais consideraç­ão a quem de fato precisa.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil