‘O bom cozinheiro tem de ter boca absoluta’, diz Claude Troisgros
Chef e empresário franco-brasileiro lança livro de receitas que inclui a trajetória de sua família e dicas de cozinha
A cozinha pode ser criativa e ainda assim uma merda. Claude Troisgros, 62, lembra desse ensinamento de Paul Bocuse, que morreu neste ano, para traduzir o momento em que está em sua carreira de quatro décadas, distante da obrigação de ser um “eterno revolucionário” e mais sintonizado com uma “cozinha de panela”.
O chef, nascido na França e criado no andar superior do restaurante da família, mudou-se nos anos 1970 para o Brasil, onde se tornou uma das principais referências na gastronomia.
Hoje, sem perder o carisma e a humildade, está à frente de um império, com cinco restaurantes no Rio de Janeiro, “and counting”, casa de evento, bufê. Participa de programas de televisão e assina livros de culinária —“As Melhores Receitas do Que Marravilha!” já esteve na lista dos mais vendidos, em levantamento feito pela Folha, acima de best-sellers como os do inglês Jamie Oliver.
Chega às livrarias na próxima semana “Claude Troisgros: Histórias, Dicas e Receitas”, pela editora Sextante. O chef não se limitou a fazer “mais um livro de receitas”.
Ele eterniza, ainda que de maneira breve, a trajetória de sua família —seu avô foi um revolucionário na maneira de pensar serviço e cozinha, e seu pai, um dos protagonistas da nouvelle cuisine.
Agrega às páginas, ainda, dicas que acumulou no dia a dia de sua carreira —às vezes mais pessoais do que técnicas, aliás. Orienta o leitor sobre como escolher, comprar e armazenar ingredientes, ou como manipulá-los para arrancar deles o melhor resultado. “Não se deve machucar a cebola, ela não deve chorar. É muito louco, porque geralmente ela que faz a gente chorar [risos].”
Insiste em reforçar a importância dos preparos básicos no repertório de qualquer cozinheiro. “Caldos são a essência de qualquer molho, e os molhos estruturam a comida.”
Diz que a cozinha não deve ser seguida à risca. “Você precisa ter a base, saber os preparos tradicionais, entender a cultura. O resto é uma grande brincadeira.”
Para Claude, um bom cozinheiro é aquele que tem o balanço entre os cinco elementos na boca e a elegância em combiná-los —acidez, amargor, sal, açúcar, a percepção do umami. “Você já ouviu falar em ouvido absoluto? O bom cozinheiro tem de ter a boca absoluta.”
Um chef, que é um posto que se conquista, “pode ou não ser criativo”. “Hoje parece uma obrigação um cozinheiro ser criativo. Você pode comer coisas inacreditáveis, que são boas ou não. O mais importante é a qualidade, o sabor, o ingrediente.”
Há um paradigma embutido nisso, em que se pese que Claude pertence a uma família que revolucionou a gastronomia com a nouvelle cuisine, movimento que se voltou para ingredientes da estação em preparos mais leves, alimentos menos cozidos e sabores acentuados.
Ele próprio é ator de uma transformação brutal no cenário da cozinha brasileira, com a qual se envolveu a partir de 1979, quando chegou ao Rio para comandar o Le Pré Catelan.
Diante de matéria-prima de “péssima qualidade”, impedido de reproduzir com o mesmo esmero as receitas francesas, passou a utilizar ingredientes brasileiros e tratá-los com as mais apuradas técnicas de seu país.
Eis que surge um repertório de elementos como licor de jabuticaba, pato com maracujá, purê de feijão-branco, cheesecake de goiabada, jiló caramelizado, sorbet de caju com cachaça.
Ainda que criativa e ousada, sua cozinha também sustenta certa simplicidade. Foi em seu Olympe, restaurante sofisticado fundado há mais de 30 anos, que incorporou o biscoito de polvilho, “que não fazia parte da nossa cultura, não tínhamos na França, os estrangeiros ficam loucos”. Para imprimir-lhe personalidade própria, Claude acrescentou curry, “que dá uma picância”.
Pois hoje, esse símbolo da praia carioca, homenagem à mandioca e à cultura local, ganhou marca do chef. Sua receita, em parceria com uma família mineira, resultou num produto que acaba de ser lançado em supermercados e empórios de todo o país.
Bem, Claude Troisgros, que em 1982 vendeu sua velha Variant e as poucas joias de sua mulher para abrir um restaurante com 30 metros quadrados, geladeira e fogão usados, hoje está à frente de uma série de empreendimentos. Promete, para o verão, um bar anexo ao Chez Claude, casa no Leblon para a qual tem se voltado com mais afinco.
“É uma cozinha de verdade, que tem alma; não é mais um tracinho e um pontinho.” É ali que Claude trabalha “sem a obrigação de ser criativo”, num ambiente dinâmico, cuja cozinha, integrada ao salão, estimula a interação com o chef.
A loja ao lado deve acolher o futuro Chez Batista. O homenageado, João Batista Barbosa de Souza, começou a trabalhar com Claude há quase 40 anos, quando bateu na porta de seu restaurante pedindo emprego na pia.
De lá para cá, passaram a dividir a cozinha —e também cama de solteiro em viagem, programa de televisão, pista de forró e o apreço pela culinária brasileira.
“A evolução que vi nesses anos não foi só da gastronomia, mas do produto e do produtor. Hoje, temos no Brasil ingredientes de grande qualidade que são comparados aos europeus. E temos mais que eles: maracujá, goiaba, maxixe, quiabo.”
Enfim, diz o chef, o profissional daqui é brasileiro. “Acabou essa onda de chef internacional fazer sucesso no Brasil. Hoje temos chefs nascidos aqui, que conhecem a cultura e os produtos do país. Tudo isso gerou uma bola de neve que fez com que a gastronomia do Brasil ficasse em plena forma e falada internacionalmente.”
Também é fruto dessa paixão pelos trópicos o documentário “Os Cinco Sentidos de Claude Troisgros”, registro de uma viagem de moto pelo rio São Francisco na qual visitou mercados populares e personagens que conheceu por acaso pelo caminho. O filme, de uma hora e meia, deve ir ao ar em janeiro no GNT, canal que exibe o reality “The Taste Brasil”, do qual participa.
Em sua carreira, Claude atravessou algumas mudanças radicais —a nouvelle cuisine, a cozinha de fusão, a vanguarda espanhola. E qual é a próxima? “Pílulas? [risos]”
Para o chef franco-brasileiro, que hoje tem ao lado nos negócios seus dois filhos, Carolina e Thomas, o cozinheiro está cada vez mais ligado ao produto. “Não é uma revolução, porque isso existe desde o meu pai, mas eu sinto uma volta a isso. O que as pessoas querem é comer bem e se divertir.”
Claude Troisgros: Histórias, Dicas e Receitas
Autor: Claude Troisgros. Ed. Sextante. R$ 149,90 (320 págs.). Lançamento em São Paulo na segunda (3), a partir das 19h, na Livraria da Vila
(al. Lorena, 1.731, Jardim Paulista)