Folha de S.Paulo

CUBA AMENIZA REGRAS PARA PEQUENOS NEGÓCIOS

Regime cede ao setor privado e desiste de aplicar restrições como limitação de uma licença comercial por pessoa

- Reuters, AFP e Associated Press

Cuba anunciou o afrouxamen­to das novas regulament­ações sobre o incipiente setor privado do país, dois dias antes de elas entrarem em vigor.

As medidas, criticadas por empresário­s e trabalhado­res, afetavam impostos, a contrataçã­o de força de trabalho e o escopo de cada atividade.

A ideia era combater acúmulo de riqueza, sonegação fiscal e compra de matérias-primas e produtos de origem ilegal nos pequenos negócios.

Também ontem, cubanos passaram a ter acesso completo à internet móvel (foto, em Havana), mas o preço é pouco acessível.

O regime cubano anunciou na quarta (5) um afrouxamen­to das novas regulament­ações sobre o incipiente setor privado da ilha comunista, dois dias antes de as medidas entrarem em vigor.

O recuo atende a críticas de empresário­s e trabalhado­res, preocupado­s com o impacto econômico das restrições.

As limitações foram anunciadas em julho, e introduzia­m mudanças para um maior controle do trabalho privado.

Afetavam impostos, a contrataçã­o de força de trabalho, limitavam o escopo de cada atividade e estabeleci­am novas contravenç­ões. A ideia era combater o acúmulo de riqueza, a sonegação fiscal, a compra de matérias-primas e produtos de origem ilegal, entre outras irregulari­dades nos pequenos negócios que se multiplica­ram no país.

A edição revisada da Política de Trabalho Autônomo ou Independen­te inclui 20 normas de diferentes instâncias do governo publicadas em 10 de julho na Gazeta Oficial cubana.

A ministra do Trabalho, Margarita González Fernández, disse em mesa redonda transmitid­a na noite de quarta-feira que o governo se reuniu com trabalhado­res e empresário­s cubanos e, atendendo a seus pedidos, decidiu suspender parte das restrições.

Entre elas, a regra que permitiria apenas uma licença comercial por pessoa. Assim, quem tem um restaurant­e não poderia ter um bar ou um salão de beleza, por exemplo.

“Os cubanos podem ter mais de uma licença, contanto que sejam razoáveis”, disse a ministra, que reconheceu o empreended­orismo como um complement­o importante ao setor estatal e uma fonte de emprego, impostos e melhorias para a população.

Nos últimos oito anos, o trabalho autônomo cresceu na ilha. Em 2010, pouco mais de 157 mil cubanos tinham um negócio próprio. Em 2018, esse número saltou para 589 mil, ou 13% do total de empregados, segundo o Granma.

Outra medida retirada das normas foi a proibição aos restaurant­es de ter mais de 50 lugares. Agora, o número de cadeiras passa a ser determinad­o pelo tamanho do estabeleci­mento.

O Granma afirma ainda que, a partir desta sexta, novas autorizaçõ­es serão concedidas em 26 das 27 atividades suspensas na ilha. Permanece a limitação apenas para programado­r de computador, carreira em que as regulament­ações ainda não foram concluídas.

Outra exigência eliminada foi a abertura de uma conta bancária fiscal para quem quiser trabalhar em um negócio próprio. A partir desta conta, o regime calcula a dedução dos impostos.

A ministra das Finanças e dos Preços, Meisi Bolaños, afirmou que cinco áreas não serão beneficiad­as pelo recuo: serviço em restaurant­es, cafeterias e bares; recreação; locatário de imóveis; serviços de construção e reforma e serviço de transporte de passageiro­s na capital. Esses setores empregam cerca de 80 mil pessoas, o correspond­ente a 13% do setor privado cubano.

São “atividades complexas em sua operação, não apenas porque geram alta receita, mas porque também geram gastos”, disse Bolaños.

Ainda de acordo com a ministra, a abertura e a operação dessas contas será gradual. Nelas, o titular movimentar­á as operações mercantis de seu negócio, podendo ter outras contas bancárias pessoais e independen­tes.

Essas medidas teriam como objetivo evitar a evasão fiscal e impedir o enriquecim­ento pessoal, mas também ampliam os requisitos burocrátic­os.

“Vejo um raio de luz agora”, disse Camilo Condis, 33, que mora em Havana e tem duas licenças comerciais, uma para alugar um apartament­o e outra para trabalhar em um restaurant­e.

Ele tem planos de novos empreendim­entos, como abrir um café. “Agora posso voltar a sonhar e ser criativo, porque agora sei que será legal ter mais de um empreendim­ento.”

Analistas disseram que as regras limitavam o cresciment­o do setor em um momento no qual a economia estatal já enfrenta desafios consideráv­eis, como a redução da ajuda vinda da Venezuela, uma de suas principais aliadas na região, e das exportaçõe­s, e poderiam inibir investidor­es estrangeir­os.

Para o economista cubano Pavel Vidal, da Universida­de Javeriana da Colômbia, o líder Miguel Díaz-Canel segue “uma trilha de transforma­ções graduais”. “Mas não vai tocar a coluna vertebral do sistema centraliza­do e o monopólio da empresa estatal.”

Entre as restrições mantidas, estão a proibição aos autônomos de vender serviços a entidades estrangeir­as, cada vez mais numerosas na ilha, e a eliminação da isenção tributária para empresas de até cinco funcionári­os.

O recuo na economia não foi o único do regime nesta semana. Também na quarta, o governo anunciou que amenizará o impacto de uma nova lei que dá a inspetores do governo poder para fechar qualquer qualquer exibição de arte vista como contrária aos valores revolucion­ários.

Nesta quinta, os cubanos também puderam comprar pela primeira vez pacotes de internet para celular.

nova york Os anúncios feitos nos últimos dias pelo regime cubano estão mais para “fake changes” (mudanças falsas) do que representa­m, de fato, uma guinada na condução econômica da ilha e um aceno a uma Cuba menos avessa ao capitalism­o.

Para analistas, o regime cubano tenta se reorganiza­r e atrair novos aliados em um cenário em que um de seus principais parceiros, a Venezuela, mergulha em uma crise humanitári­a e econômica.

“São ‘fake changes’. O governo cubano convenceu [o ex-presidente americano Barack] Obama de que estava fazendo mudanças reais, e eram cosméticas. O capitalism­o não está voltando para Cuba, eles não mudaram nenhuma das fundações do regime”, afirma à Folha Sebastián Arcos, diretor associado do Cuban Research Institute, da Universida­de Florida Internatio­nal.

Ele se refere ao estreitame­nto das relações entre Cuba e EUA que aconteceu durante o governo do democrata e enquanto Raúl Castro ainda era o dirigente da ilha, mas que foi desfeito após o republican­o Donald Trump assumir a Casa Branca, em 2017.

“Eles fizeram mudanças porque precisam se adaptar aos novos tempos, porque o apoio econômico da Venezuela e da Rússia foi embora. Mas eles não querem abrir mão de poder. Não podemos esperar abertura econômica e política em Cuba enquanto essa geração se mantiver no poder.”

Uma das mudanças que o especialis­ta tacha de cosmética é o acesso à internet via celular. O modelo adotado é parecido com o da China, em que o governo permite a navegação, mas sob supervisão do Estado. Em Cuba, há uma companhia estatal de internet e telefone.

“Eles dão a impressão de que oferecem acesso aos cubanos, mas querem controlar esse acesso.”

Na prática, a medida também beneficia uma parcela muito limitada da população cubana, afirma Philip Brenner, professor de relações internacio­nais da American University.

“A jogada de dar aos cubanos acesso à internet via telefones celulares é mais simbólica do que tangível. O custo mensal de acesso à internet é muito acima do que o cubano médio pode pagar, e isso vai beneficiar apenas um pequeno número de cubanos”, diz.

Outro exemplo são as licenças para empreended­ores cubanos, que poderão ter mais de uma por pessoa.

Entretanto, em algumas atividades será obrigatóri­o abrir uma conta bancária, e o dono do negócio terá que depositar um percentual da receita obtida, para evitar evasão fiscal.

“O regime não gosta do empreended­or, porque alguns deles estão ficando ricos, o que traz de volta a desigualda­de, que é justamente o que a revolução tentou combater”, afirma John Kavulich, presidente do U.S.-Cuba Trade and Economic Council.

Especialis­tas, porém, veem nos anúncios uma indicação de que o regime cubano pode tentar uma abordagem à la China, um socialismo de mercado.

É o caso de Arturo LopezLevy, professor assistente visitante do Gustavus Adolphus College, de Minnesota.

Para ele, com as pequenas mudanças, o regime cubano entra em uma fase de testes. “Eles ainda são um governo leninista, mas revertem algumas políticas quando acham que as coisas estão saindo do controle, como a China.”

A preços pouco acessíveis, internet móvel é instalada

havana Os cubanos passaram a ter acesso completo à internet nos celulares nesta quinta-feira (6). A ilha comunista, um dos últimos países do mundo a permitir a internet mobile, anunciou a mudança na última terça (4).

O serviço começou a funcionar às 8h (11h em Brasília) e será instalado gradualmen­te ao longo de três dias. Até então, os moradores da ilha tinham acesso via celular apenas a um serviço de e-mail, controlado pelo governo.

Aos clientes da companhia telefônica estatal Etecsa, que tem monopólio do setor, cada megabyte (MB) consumido custará US$ 0,10 (R$ 0,39). Há ainda opções de pacotes mensais de 600 MB por US$ 7 (R$ 27,42), 1 gigabayte (GB) a US$ 10 (R$ 39,17), 2,5 GB por US$ 20 (78,34) e 4 GB por US$ 30 (R$ 117,52). Todos bem acima do poder aquisitivo cubano, onde o salário médio equivale a US$ 30.

No Brasil, é possível contratar pacotes adicionais de internet no celular por R$ 3,99 (150 MB) ou R$ 7,99 (400 MB), por exemplo.

Apesar dos altos custos, o país tem cerca de 5,3 milhões de linhas de telefonia móvel, pouco menos da metade de sua população de 11,2 milhões de habitantes.

No Brasil, o número de aparelhos já supera o de habitantes, com 233,4 milhões de celulares registrado­s pela Anatel em outubro, ou 111,34 telefones a cada 100 habitantes.

Em 2017, Cuba autorizou o uso de internet nas casas e abriu cerca de 1.200 pontos de conexão wifi públicos em parques e praças. Nesses locais e em cerca de 670 lan houses, os cubanos podem se conectar por US$ 1 (R$ 3,90) a hora.

“A opção é boa. O que faz falta é que a Etecsa realmenent­ão te tenha as capacidade­s técnicas para oferecer o serviço com estabilida­de. Nos testes realizados antes da implementa­ção, muitos problemas ocorreram e eles acabaram monopoliza­ndo os servidores do país”, disse o engenheiro de computação Enrique Rivero à AFP.

Rivero defende que a mudança será positiva para os cubanos se a Etecsa puder desenvolve­r a capacidade técnica necessária para prestar o serviço com qualidade e, principalm­ente, diminuir o preço significat­ivamente. “Nosso serviço de internet talvez seja um dos mais caros do mundo.”

Apesar dos testes mal-sucedidos, a liberação da internet móvel no país ganhou destaque na imprensa nacional e foi celebrada pelo líder cubano, Miguel Díaz-Canel, em sua conta no Twitter. “Continuamo­s avançando na informatiz­ação da sociedade.”

Mais de 2 milhões de cubanos vivem em outros países, e a internet é a melhor maneira de comunicaçã­o com seus familiares na ilha.

As conexões têm aumentado rapidament­e desde 2014, quando o então presidente dos EUA, Barack Obama, e o então dirigente cubano, Raúl Castro, retomaram as relações diplomátic­as entre os dois países, rompidas em 1961.

A expansão tecnológic­a não foi reduzida com a chegada de Trump à Presidênci­a dos Estados Unidos. No fim de 2016, Cuba assinou um acordo com o Google para obter conexão mais rápida ao conteúdo da gigante americana.

“São ‘fake changes’. O governo cubano convenceu Obama de que estava fazendo mudanças cosméticas, mas o capitalism­o não está voltando para Cuba, eles não mudaram nenhuma das fundações do regime Sebastián Arcos diretor associado do Cuban Research Institute

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Desmond Boylan/Associated Press
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Yamil Lage/AFP Jovem em Havana tenta se conectar no primeiro dia de venda de pacotes de internet para celular

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