Por falar em democracia
Soberania popular é hoje confundida com populismo
Desde a Antiguidade clássica até a segunda metade do século 19, a democracia sempre foi tida como regime político subversor da hierarquia social. Montesquieu sustentava que, numa sociedade democrática, as mulheres, as crianças e os escravos já não se submeteriam a ninguém, já não haveria bons costumes, amor à ordem, virtude, enfim.
Por sua vez, James Madison, um dos “founding fathers” dos Estados Unidos, sublinhou que a democracia, por ele entendida como a “sociedade consistente num pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo diretamente”, incentivaria o espírito de facção, pondo em constante risco a ordem social.
Entre nós, menos de um ano após a independência, quando se elaborava a Constituição do novo Estado, o jovem imperador lançou um brado de alerta:
“Algumas Câmaras das Províncias do Norte deram instruções aos seus deputados em que reina o espírito democrático. Democracia no Brasil! Neste vasto e grande Império é absurdo; e não é menor absurdo o pretenderem elas prescrever leis aos que as devem fazer, cominandolhes a perda ou derrogação de poderes, que lhes não tinham dado, nem lhes compete dar”.
Durante todo o século 20, contudo, o juízo de valor que se fazia sobre a democracia era exatamente o inverso. Com raras exceções, nenhum partido ou movimento político ousava dizer-se antidemocrático. Todos, ao contrário, esforçavam-se por se apresentar como os únicos verdadeiros defensores do “governo do povo, pelo povo e em prol do povo”.
Tal unanimidade a propósito de democracia era evidentemente suspeita. Ao fazer do elogio desse regime um simples chavão político, ela revelava formidável confusão semântica. O povo, que pela própria etimologia (demos, povo + kratos, poder) seria o principal beneficiário dessa forma de organização política, sempre pareceu ter sérias dificuldades em entender o que está por trás das palavras encantatórias da propaganda.
Pesquisa realizada pelo instituto Latinobarômetro revelou que o apoio dos latino-americanos à democracia chegou em 2018 ao nível mais baixo já registrado: 48%, uma queda de cinco pontos percentuais em relação à 2017. No Brasil, esse apoio é ainda menor: 34%.
Pois bem, atualmente a aprovação da democracia se enfraquece no mundo todo; isso tem suscitado apreciável número de estudos sobre o fenômeno, até mesmo nos Estados Unidos, apresentado como parâmetro desse regime político após a Segunda Guerra Mundial.
A soberania popular é hoje, cada vez mais, como se acaba de ver em nosso país, confundida com populismo; ou seja, a revolta do “povão” contra as elites e a busca de um homem forte no governo; se possível, um militar da ativa ou da reserva, cercado de seus colegas de farda.
Pergunta-se: é possível vencer essa tendência declinante? De minha parte, respondo afirmativamente, desde que se compreenda qual a condição essencial de um regime de autêntica soberania popular, e não de uma oligarquia fantasiada em democracia, como sempre aconteceu em nosso país.
Esse pré-requisito essencial implica a ausência de uma profunda desigualdade social, a qual sempre existiu entre nós. Hoje, conforme relatórios da prestigiosa ONG internacional Oxfam, sabe-se que as seis pessoas mais ricas do Brasil têm o mesmo patrimônio que a metade mais pobre do país. De sua parte, a WID (World Wealth and Income Database) colocou nosso país como líder mundial em desigualdade, atrás até mesmo dos países do Oriente Médio.
Tudo isso, como ninguém ignora, tem consequências políticas arrasadoras. A Constituição em vigor, como várias que a precederam, declara solenemente que “todo o poder emana do povo”. Mas este jamais teve a mínima condição de exercê-lo.