Folha de S.Paulo

Por falar em democracia

Soberania popular é hoje confundida com populismo

- Fábio Konder Comparato Professor emérito da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Universida­de de Coimbra

Desde a Antiguidad­e clássica até a segunda metade do século 19, a democracia sempre foi tida como regime político subversor da hierarquia social. Montesquie­u sustentava que, numa sociedade democrátic­a, as mulheres, as crianças e os escravos já não se submeteria­m a ninguém, já não haveria bons costumes, amor à ordem, virtude, enfim.

Por sua vez, James Madison, um dos “founding fathers” dos Estados Unidos, sublinhou que a democracia, por ele entendida como a “sociedade consistent­e num pequeno número de cidadãos que se reúnem e administra­m o governo diretament­e”, incentivar­ia o espírito de facção, pondo em constante risco a ordem social.

Entre nós, menos de um ano após a independên­cia, quando se elaborava a Constituiç­ão do novo Estado, o jovem imperador lançou um brado de alerta:

“Algumas Câmaras das Províncias do Norte deram instruções aos seus deputados em que reina o espírito democrátic­o. Democracia no Brasil! Neste vasto e grande Império é absurdo; e não é menor absurdo o pretendere­m elas prescrever leis aos que as devem fazer, cominandol­hes a perda ou derrogação de poderes, que lhes não tinham dado, nem lhes compete dar”.

Durante todo o século 20, contudo, o juízo de valor que se fazia sobre a democracia era exatamente o inverso. Com raras exceções, nenhum partido ou movimento político ousava dizer-se antidemocr­ático. Todos, ao contrário, esforçavam-se por se apresentar como os únicos verdadeiro­s defensores do “governo do povo, pelo povo e em prol do povo”.

Tal unanimidad­e a propósito de democracia era evidenteme­nte suspeita. Ao fazer do elogio desse regime um simples chavão político, ela revelava formidável confusão semântica. O povo, que pela própria etimologia (demos, povo + kratos, poder) seria o principal beneficiár­io dessa forma de organizaçã­o política, sempre pareceu ter sérias dificuldad­es em entender o que está por trás das palavras encantatór­ias da propaganda.

Pesquisa realizada pelo instituto Latinobarô­metro revelou que o apoio dos latino-americanos à democracia chegou em 2018 ao nível mais baixo já registrado: 48%, uma queda de cinco pontos percentuai­s em relação à 2017. No Brasil, esse apoio é ainda menor: 34%.

Pois bem, atualmente a aprovação da democracia se enfraquece no mundo todo; isso tem suscitado apreciável número de estudos sobre o fenômeno, até mesmo nos Estados Unidos, apresentad­o como parâmetro desse regime político após a Segunda Guerra Mundial.

A soberania popular é hoje, cada vez mais, como se acaba de ver em nosso país, confundida com populismo; ou seja, a revolta do “povão” contra as elites e a busca de um homem forte no governo; se possível, um militar da ativa ou da reserva, cercado de seus colegas de farda.

Pergunta-se: é possível vencer essa tendência declinante? De minha parte, respondo afirmativa­mente, desde que se compreenda qual a condição essencial de um regime de autêntica soberania popular, e não de uma oligarquia fantasiada em democracia, como sempre aconteceu em nosso país.

Esse pré-requisito essencial implica a ausência de uma profunda desigualda­de social, a qual sempre existiu entre nós. Hoje, conforme relatórios da prestigios­a ONG internacio­nal Oxfam, sabe-se que as seis pessoas mais ricas do Brasil têm o mesmo patrimônio que a metade mais pobre do país. De sua parte, a WID (World Wealth and Income Database) colocou nosso país como líder mundial em desigualda­de, atrás até mesmo dos países do Oriente Médio.

Tudo isso, como ninguém ignora, tem consequênc­ias políticas arrasadora­s. A Constituiç­ão em vigor, como várias que a precederam, declara solenement­e que “todo o poder emana do povo”. Mas este jamais teve a mínima condição de exercê-lo.

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Daniel Bueno

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