Folha de S.Paulo

Forças ruralistas e evangélica­s agem contra Funai

No campo indigenist­a, há pouca coisa mais reprovável do que tentar impor ao índio nosso modo de vida a qualquer custo

- Rubens Valente

O empurra-empurra na transição do governo Jair Bolsonaro (PSL-RJ) nas últimas semanas sobre onde ficaria a Funai (Fundação Nacional do Índio), encerrado nesta quinta (6) com o anúncio de que irá para um novo Ministério das Mulheres, Família e Direitos Humanos, foi o capítulo mais evidente de um processo de estrangula­mento vivido pelo órgão nos últimos anos que se acentuou após a posse de Michel Temer.

O pano de fundo são pressões políticas que vêm de dois grupos distintos, às vezes com interesses em comum, os ruralistas e os evangélico­s.

Esses lobistas, muitos dos quais são parlamenta­res, enxergam no governo Bolsonaro a chance de dar a enquadrada no órgão a fim de que dê uma guinada na política indigenist­a em direção a um projeto maior que levaria à desterrito­rialização do índio.

Bolsonaro já chamou esse objetivo de “emancipaçã­o”, mesma expressão usada na ditadura militar no Estatuto do Índio, de 1973, e num projeto arquivado em 1978 pelo então ministro do Interior, Rangel Reis, após uma intensa reação da sociedade civil.

A ideia bolsonaris­ta é permitir que, em algum momento, o índio receba títulos das terras para que possa arrendá-las ou “até mesmo vendêlas”, como declarou Bolsonaro.

A venda é proibida pela legislação, já que são registrada­s em cartório em nome da União. Tentar algo nesse sentido deverá provocar no Judiciário uma avalanche de processos e acusações de improbidad­e a serem movidos pelo Ministério Público Federal, mas Bolsonaro parece alheio a esses detalhes da democracia.

A crítica mais comum é simples de ser entendida. Uma vez que o índio tenha o título da terra, ele pode ser subornado ou pressionad­o com violência por fazendeiro­s da região para vendê-la. O comércio da terra seria, a médio prazo, o fim da própria etnia, forçada a se deslocar para a periferia das grandes cidades ou trabalhar como mão de obra barata da agroindúst­ria.

Os grupos de pressão trabalham com agenda semelhante às ideias de Bolsonaro.

Os ruralistas querem impedir a Funai de fazer novas demarcaçõe­s de terras e forçar que ela permita “parcerias” com indígenas, na forma de arrendamen­tos.

Pressionam também para começar uma rediscussã­o sobre o tamanho de algumas terras já demarcadas, no que seria considerad­o o maior ataque aos direitos dos índios desde o fim da ditadura. Estão na mira, por exemplo, as terras Karipuna (RO) e Apyterewa (PA), ambas já homologada­s pela Presidênci­a, mas invadidas em vários pontos.

Entre os evangélico­s, a pauta é pressionar a Funai a permitir o aumento da evangeliza­ção indígena, em especial na Amazônia.

A Funai resiste a autorizar que evangélico­s possam realizar supostos “estudos” entre indígenas, e por isso é alvo de acusações de pastores e deputados. Com o novo ministério, a Funai ficará subordinad­a a uma pastora evangélica, Damares Alves.

O cenário de conflagraç­ão no campo indigenist­a é agravado por declaraçõe­s confusas e difamatóri­as de Bolsonaro.

Ele repetidame­nte retrata a demarcação da terra indígena Yanomami (RR) como parte de um sinistro plano de internacio­nalização da Amazônia.

Porém, nunca explica que ela foi homologada com seus 9,4 milhões de hectares após uma intensa campanha da sociedade civil por um presidente de direita ou, vá lá, de centro-direita, Fernando Collor, e por um militar ministro da Justiça, o coronel da reserva Jarbas Passarinho (1920-2016), e expoente da ditadura militar elogiada por Bolsonaro.

Há diversos outros episódios semelhante­s na história do país que evidenciam uma interligaç­ão positiva entre setores conservado­res e indigenist­as para garantir o reconhecim­ento e uso das terras tradiciona­is pelos primeiros habitantes do país. Prevaleceu um senso de justiça capaz de unir setores tão diversos quanto a antropolog­ia e a caserna. São belas páginas das quais os brasileiro­s deveriam se orgulhar.

Tudo isso desaparece nos discursos de Bolsonaro e a questão indígena se vê jogada em nuvens de mistificaç­ão, mentiras e infâmias. O objetivo central parece ser erodir a credibilid­ade de ONGs, Ministério Público, indigenist­as, antropólog­os e indígenas.

Há uma razão para o presidente eleito e seus aliados militares mais próximos nunca contarem a história por inteiro: isso atrapalhar­ia a narrativa de que as terras indígenas, anacronica­mente chamadas por ele de “reservas”, são criações ideológica­s da esquerda e de ONGs em conluio com interesses internacio­nais a fim de manter os índios enclausura­dos e impedidos de conhecer as belezas e luxos do mundo dito “civilizado”.

Bolsonaro parece não entender que não existe um “índio”, mas sim mais de 255 povos indígenas diferentes, cada um com sua própria história, tradição e aspiração. No campo indigenist­a, há pouca coisa mais reprovável do que tentar impor ao índio o nosso modo de vida a qualquer custo. E quando uma máquina estatal insiste nisso, movida por um discurso presidenci­al anacrônico, totalitári­o e indiferent­e, o resultado é apenas um: genocídio.

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Pedro Ladeira/Folhapress Índios tentam ser recebidos por integrante do novo governo no CCBB

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