Folha de S.Paulo

Parindo cifrões

O sorriso da sua avó naquela foto amarelada foi a última coisa sincera na Terra

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Há limites para a sororidade. Confesso que minha boca dá uma entortada de nojo quando vejo, no Instagram, uma grávida fazendo dinheiro em cima do próprio feto.

Deparar com os dois risquinhos indicando que, sim, você carrega uma vida dentro do seu ventre deveria ser um momento extremamen­te íntimo e meditativo, e não ensejo para faturar em cima da marca do teste de gravidez. Me desculpem, mas acho isso mais do que brega ou deprimente, acho um tantinho doentio.

Se você está mais preocupada com as roupas de “saída da maternidad­e” (que você e seu filho vão usar) do que maravilhad­a com o fato de que seu pequeno bebê verá o mundo pela primeira vez, deu ruim com a sua capacidade afetiva. Se o quartinho da maternidad­e, em vez de servir como uma bolha delicada e possível para os primeiros e fundamenta­is contatos entre a nova mãe e o novíssimo filho, serve como dica de serviço de decoração e buffet, haja psicanális­e para salvar o futuro dessa criança da angústia extrema.

Se o nascimento virou um show a ser transmitid­o e o bebê virou só mais um tema a ser explorado no espetáculo “Esta É Minha Vida”, onde fica a relação real da progenitor­a com sua cria? Se os obstetras se tornam estrelas caríssimas e mais importante­s e especiais do que uma mulher dando à luz, onde fica o parto? Se a primeira coisa que te perguntam ao chegar com contrações no hospital é se vai querer contratar os serviços de filmagem e fotografia, onde fica a privacidad­e?

Se a gravidez e a amamentaçã­o são embaladas por agentes, assessores, advogados e marcas, onde fica a mãe? Se uma semana depois o corpo delas já está impecável, onde fica a realidade? Se depois da montanha-russa de hormônios o importante é estar linda e serena para as fotos, onde ainda reside algo de humano nessas mulheres?

Às vezes, é preciso apenas dormir, tomar banho, comer uma azeitona, tirar um pelo encravado e chuchar o molho do prato com um pedaço de pão sem ganhar dinheiro com isso. Parece uma grande perda de tempo existir sem anunciar nada, andar por aí sem otimizar o oxigênio com cifrões, viver instantes sem patrocinad­ores —mas é o que gerações e gerações fizeram nos últimos milhares de anos. Aquele sorriso da sua avó naquela foto amarelada foi o último vestígio de sinceridad­e na Terra.

A febre de monetizar cada arroto é muito assustador­a. A ânsia de etiquetar cada pensamento e espirro tem sido pior para nossos tempos do que a temida onda conservado­ra. Ou, melhor dizendo, são igualmente perversas e arrasadora­s. No livro “O Show do Eu”, Paula Sibilia diz que: “Cada vez mais, é preciso aparecer para ser. Se ninguém vê algo, é bem capaz que ele nem exista”. Penso então que as influencer­s que transforma­m seus regimes, casamentos, partos e férias em um diário aberto instagrama­do temem, caso saiam das redes sociais, chegar em casa e se descobrire­m flácidas, solitárias, com ovários policístic­os e vista para a marginal Pinheiros.

Mas meu ponto aqui é outro. Chegamos a algo bem mais insano do que a sociedade do espetáculo. Hoje vivemos algo como “a sociedade que busca 67 patrocinad­ores para validar o espetáculo”. Se no começo era ridículo transforma­r um pum em milhares de likes, o que podemos dizer dos dias atuais, em que um pum só pode sair se tiver três vias de contrato previament­e assinado com alguma marca de luxo?

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