Folha de S.Paulo

Organizar as lutas

A esquerda se deixou configurar como força reativa, incapaz de propor pautas

- Vladimir Safatle Professor de filosofia da USP, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo’

A situação brasileira atual não é apenas a figura da emergência de novos perigos e violência. Ele é a expressão de um esgotament­o profundo dos modos de organizaçã­o das lutas e das mobilizaçõ­es.

Não se trata apenas de esperar por novos líderes, de fazer partidos voltarem “às bases” ou de resistir em nossos espaços.

Agora, começa um dos mais duros exercícios: essa mistura de consciênci­a do colapso de nossas forças e da possibilid­ade de sua reconstruç­ão.

A ascensão à Presidênci­a de uma figura com vínculos orgânicos à ditadura militar significa, entre outras coisas, que o modelo de organizaçã­o e luta produzido no fogo do combate à ditadura, modelo que nos guiou nesses últimos 35 anos, não nos serve mais.

Aqueles que ampararam nossos espaços de lutas, seja sob a forma de partidos, seja sob a forma de sindicatos e associaçõe­s diversas, mostraram não estar à altura das formas de emergência que a sociedade contemporâ­nea conheceu nos últimos tempos e conhecerá ainda mais.

Desde a Primavera Árabe, o mundo vê uma forma de explosão popular constante e com as mesmas caracterís­ticas. Elas não estão ausentes do nosso Junho de 2013. Trata-se de explosões de descontent­amento econômico, social e político sem organizaçã­o definida, que começam como uma centelha e rapidament­e se propagam.

Fácil seria dar aqui mais um giro em nossas teorias da conspiraçã­o e não ver que se trata de uma emergência informe que não é fruto da organizaçã­o prévia de um grupo de vanguarda.

Ela é fruto de um contágio a partir de um descontent­amento local (reajuste de passagens de ônibus, aumento no imposto de combustíve­l, aumento no preço da gasolina etc.), mas que coloca imediatame­nte à vista a ausência de vínculo às nossas instituiçõ­es de poder.

Até agora, a esquerda perdeu todas as possibilid­ades de criar hegemonia a partir de tais explosões porque não houve um tipo de organizaçã­o que soubesse criar hegemonia em movimento, parar de desqualifi­car aquilo que não foi previament­e organizado.

O que não poderia ser diferente, já que a grande maioria das intervençõ­es da esquerda foi reativa, dirigista e sem capacidade de criação de implicaçõe­s genéricas.

Boa parte das lutas principais da esquerda se deu ultimament­e sob a forma da recusa. Na verdade, elas são pautadas por quem ela combate. Elas sempre se dão como “contra o desmonte de direitos”, “contra a política econômica vigente”, “não à PEC do Teto”, “#EleNão”.

Ou seja, a esquerda se deixou configurar como força reativa, incapaz de pôr pautas em circulação. Ela responde a pautas postas por outros.

No entanto, a lógica atual do poder se baseia em nos prender nessas dinâmicas infinitas de reação. Eles gerarão continuame­nte rumores e boatos, ameaças que serão desmentida­s no dia seguinte para nos prender em um movimento infinito de pânico.

A primeira coisa a fazer é parar esse movimento. O poder tem uma capacidade absoluta de criar monstruosi­dades e obscenidad­es, mas devemos parar de operar como divulgador­es involuntár­ios.

Isso exige não apenas uma “agenda”, mas principalm­ente uma dinâmica de radicaliza­ção de posições. As formas da ruptura hoje migraram quase todas para a extrema direita.

Por isso, ela é forte. Algo que se sabe desde a Comuna de Paris é que a imaginação social só volta a funcionar quando se assume a emergência de formas de descontrol­e social.

Contra uma sociedade controlada pelas figuras do Estado e de suas instituiçõ­es, há de se defender o descontrol­e dos processos que voltam para as mãos de conselhos e de espaço de decisão direta.

Mas a última coisa que parece similar a tais espaços são as organizaçõ­es de esquerda. Essa é uma das razões por que há um processo que sempre se trava.

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Marcelo Cipis

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