Livrarias menores abrem novas lojas e preveem crescer
Com excesso de estoques e queda nas vendas em lojas físicas, dívida virou bola de neve para livreiros
Em trajetória diferente da que levou à crise as redes Cultura e Saraiva, livrarias menores dizem estar com as contas sob controle. Há planos para inaugurações e previsão de expansão em 2019. Desde janeiro, as vendas de livros cresceram 9,33% em valor.
Além do peso das dívidas que deixaram com editores ao pedir recuperação judicial nos últimos meses, as grandes redes varejistas Saraiva e Cultura ainda mantêm em seus estoques milhares de livros cedidos em consignação.
Esse é o sistema pelo qual o editor disponibiliza suas obras às livrarias, mas só recebe o pagamento depois da venda ao consumidor final. O que não é vendido pode ser devolvido ao fabricante.
O modelo de consignação é uma especificidade do varejo de livros e revistas que não é praticado em outros setores, como vestuário, alimentos, farmacêuticos ou outros bens de consumo, segundo Eduardo Terra, presidente da SBVC (Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo).
Sem ter de comprar seu próprio estoque, as varejistas de livros não precisam empatar capital de giro, uma condição favorável que se soma a outras características do segmento, como bons prazos para pagar aos fornecedores, de acordo com Terra.
Esses fatores permitiram a preservação da saúde dos negócios e um período de expansão das duas líderes de mercado, que durou mais de uma década.
No período, Cultura e Saraiva obtiveram financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para a abertura de novas lojas em shoppings e em outros estados, além de São Paulo.
O cenário mudou quando a Amazon ingressou na venda de livros físicos no Brasil, em 2014, com musculatura financeira para não precisar fazer consignação com editores.
A nova concorrente instalou uma guerra de preços entre livrarias físicas e o comércio online.
“A Amazon não consignava. Ela comprava e ainda pagava mais para os editores. E depois vendia barato ao consumidor final. Saraiva e Cultura foram, então, atacadas em um momento em que houve um outro complicador: a crise econômica”, diz Terra.
O Ebtida (lucro antes de juros, impostos, amortizações e depreciações) da Livraria Cultura caiu de R$ 21 milhões em 2013 para um prejuízo de R$ 77 milhões em 2017.
Os primeiros sinais de fragilidade das varejistas brasileiras começaram em 2016, com o atraso de pagamentos e tentativas de renegociação. A despeito disso, muitas editoras mantiveram o sistema de consignação com as duas.
“Ao acreditar que a Saraiva seria capaz de se recuperar, nós aumentamos nossa exposição na empresa e estamos hoje tendo de assumir um prejuízo 80% maior do que se tivéssemos tomado a decisão, em abril, de passar a fazer só fornecimento à vista”, disse Marcos da Veiga Pereira, sócio da Sextante, uma das maiores do setor.
Em julho de 2017, a Cultura assumiu as lojas da Fnac no Brasil, quando a francesa decidiu deixar sua subsidiária no país após sucessivas perdas.
Para isso, a Cultura recebeu cerca de R$ 130 milhões da multinacional francesa, uma operação que gerou esperanças no mercado, mas se mostrou malsucedida. Um ano depois, todas as lojas da Fnac foram fechadas.
O espaço para reagir ao impacto de tamanho endividamento de Cultura e Saraiva é maior entre as editoras de grande porte, que têm mais acesso a crédito, e podem se readequar reduzindo o volume de lançamentos.
Foi o que fez o grupo Companhia das Letras, que passou de 350 títulos anuais para 300 e deve cortar mais 15% ou 20% dos livros programados no próximo ano, segundo afirmou o presidente do grupo, Luiz Schwarcz, em entrevista à Folha na segundafeira (3).
A Gente Livraria e Editora disse à Justiça ter 135.553 exemplares de obras consignadas com a Saraiva, o que, em valores de mercado, significaria R$ 2 milhões.
Considerando ainda os livros já vendidos e não pagos, a dívida da Saraiva com a editora seria de cerca de R$ 3,6 milhões. Aproximadamente 40% do seu faturamento, de acordo com informações que prestou à Justiça, estava concentrado na mão da livraria.
Outra empresa muito preocupada com a situação é a Ciranda Cultural, especializada em livros infantojuvenis.
À Justiça declarou que a Saraiva lhe deve cerca de R$ 1,5 milhão e ainda retém, em consignação, cerca de R$ 2,3 milhões em mercadorias.
“A perda de tal valor pode incidir em prejuízo que inviabilize a continuidade de sua atividade”, disse no processo, acrescentando que já amarga prejuízos da ordem de mais de R$ 730 mil com a recuperação judicial da Cultura.
O rombo trazido pelas recuperações judiciais das duas livrarias também atingiu distribuidores, que agora precisam se entender com as editoras para compartilhar os prejuízos.
Roberto Novaes, diretor da Catavento Distribuidora, credor da Saraiva em mais de R$ 2,6 milhões, diz que “segurar o baque sem o apoio das editoras seria suicídio”. Ele calcula que os negócios com Cultura e Saraiva correspondam a 25% de seu faturamento.
“Temos de negociar com as editoras porque sempre somos cobrados para colocar os livros delas nas grandes redes. Se recebermos [da livraria] uma proposta de pagamento em dez anos com deságio, essa vai ter de ser a proposta que teremos que passar para o editor”, diz Novaes.
Livrarias culpam crise econômica pela recuperação judicial
No pedido de recuperação judicial feito em outubro, a Livraria Cultura diz “ser vítima, assim como tantos outros grupos de empresas responsáveis e bem administradas, da profunda crise econômica que assola o país desde 2014”.
Afirmou também que a absorção da operação brasileira da Fnac, em 2017, “prejudicou ainda mais o quadro de caixa deficitário que já vinha se desenvolvendo nos últimos anos”.
À época do acordo com a Fnac, a Cultura já estava atrasando pagamento a editores e renegociando valores. Procurada pela reportagem, a varejista preferiu não se manifestar.
A Saraiva também responsabiliza a crise e o decorrente declínio no volume das vendas pela sua situação.
Além disso, a companhia afirma em seu pedido de re- cuperação judicial que a Copa do Mundo, a paralisação dos caminhoneiros e a tendência mundial de queda do mercado de livrarias físicas também impactaram o faturamento.
“Fatos que acabaram por levar a Saraiva à incapacidade de honrar com as suas obrigações no tempo e modo acordados”, diz na petição à Justiça.
A despeito disso, a empresa disse à Justiça considerar que, com o plano de recuperação judicial, “tem totais condições de manter sua atividade e de se reerguer”.
Procurada, a empresa diz que, neste ano, propôs aos fornecedores a negociação de seu passivo, mas não obteve sucesso, e tem tomado medidas para readequar o negócio à “nova realidade de mercado, com quedas constantes no preço do livro e aumento da inflação”.
Com concorrentes em crise, Amazon oferece ajuda a editor
Tida por muitos especialistas no setor como a concorrente que desencadeou a crise das livrarias físicas, a Amazon apresentou um plano para amenizar a pressão sobre as editoras.
Logo após as notícias de recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, que deixaram o mercado editorial fragilizado, a gigante do comércio eletrônico enviou uma comunicado às editoras oferecendo uma lista de pontos para socorrê-las.
Pediu que as editoras não cancelem nem adiem lançamentos de livros sem discutir antes com a Amazon porque ela pode viabilizar os títulos no formato de livro eletrônico.
Também ofereceu pagamento antecipado de recebíveis com taxas mais baixas do que as praticadas pelo mercado. Entre outras alternativas, a Amazon se ofereceu para comprar parte do inventário que tenha sido devolvido pelo mercado.
Mario Meirelles, gerente-geral para livros impressos da companhia americana, disse que nenhum dos pontos listados é novidade para a empresa.
Mas a simples reapresentação gerou interesse em um momento de fragilidade.
“A nossa carta foi feita para deixar claro e relembrar as editoras de que temos essas políticas. Muitas editoras pequenas nem sabiam que temos essas políticas”, disse o executivo.