Folha de S.Paulo

Não Um não à subserviên­cia

Alinhar-se a Trump seria uma tragédia econômica e moral

- Celso Amorim Ex-ministro das Relações Exteriores (2003-2010, governo Lula) e da Defesa (2011-2015, governo Dilma)

Ao longo dos últimos 30 anos após a queda da ditadura — excetuados os dois ou três últimos—, o Brasil se foi firmando como uma potência independen­te, com papel aglutinado­r na América Latina e no mundo em desenvolvi­mento, em particular em relação à África e com peso nas relações internacio­nais, inclusive junto às grandes potências.

Com a democratiz­ação, a estabiliza­ção financeira e a eleição de um líder oriundo das camadas mais pobres da população, profundame­nte engajado com a diminuição da desigualda­de social, foram sendo sucessivam­ente criadas as condições objetivas e subjetivas para o exercício de um papel próprio e afirmativo do nosso país no cenário internacio­nal.

Como ministro de Itamar Franco e embaixador de Fernando Henrique Cardoso, vivenciei alguns dos processos que prepararam o grande salto dado no governo do presidente Lula. No curto período Itamar, institucio­nalizamos o Mercosul e não permitimos que fosse “engolido” pelo projeto de dominação da Alca.

Como embaixador na ONU no governo FHC, atuei, sem que Brasília objetasse, em favor de uma solução pacífica para a questão do Iraque, buscando introduzir certo grau de racionalid­ade no sistema de inspeção de armamentos e procurando pôr termo ao regime de sanções que penalizava o povo (e não o governo) iraquiano.

Como embaixador em Genebra e com o apoio do então ministro da Saúde, José Serra, negociei, em nome do Brasil, a Declaração de Doha sobre propriedad­e intelectua­l e saúde pública, até hoje um marco de referência na busca de soluções adequadas e acessíveis para enfermidad­es como a aids, a malária e a tuberculos­e.

Não há espaço aqui para recapitula­r as posições e iniciativa­s tomadas pelo Brasil durante o governo Lula e que levaram o Brasil ao centro do tabuleiro das grandes negociaçõe­s internacio­nais. Na Alca, paramos uma negociação injusta, que nos privaria da capacidade de desenvolve­r políticas sociais e econômicas necessária­s ao nosso desenvolvi­mento.

Na OMC, o Brasil, junto com a Índia, se tornou um ator incontorná­vel na defesa dos interesses dos países em desenvolvi­mento. Não obtivemos o que queríamos na Rodada de Doha, em virtude da obstinação dos países ricos em manter injustos e nocivos subsídios à agricultur­a, mas impedimos um acordo que teria tornado ainda mais desequilib­radas as regras do comércio internacio­nal.

Na área da paz e segurança, fomos um dos pouquíssim­os países de fora da região a serem convidados para a Conferênci­a de Annapolis, nos EUA, que, por algum tempo, pareceu dar uma chance real à paz no Oriente Médio. Juntamente com a Turquia, concluímos com o Irã uma negociação sobre seu programa nuclear, que abriu caminho para o acordo que Obama assinaria alguns anos mais tarde (com mais cinco países) com Teerã.

Tudo isso —em diferentes governos e em distintos graus— só foi possível em razão do respeito que só uma atitude de altivez e independên­cia propicia. Excetuados certos espasmos de curta duração, foi somente no início do governo militar, entre 1964 e 1966, que o Brasil se deixou conduzir pelo alinhament­o acrítico com os EUA.

Foi a época das “fronteiras ideológica­s”, refutadas de forma explícita no período Geisel/Silveira. É essa política subservien­te, que em nada aproveita ao país, que se pretende reeditar agora, justamente no momento em que Washington se isola do mundo, adota atitudes protecioni­stas no plano econômico e abandona os instrument­os multilater­ais que os próprios EUA ajudaram a criar ao final da Segunda Guerra.

Alinhament­o automático com Washington (ou com quem quer que seja) nunca foi boa política. Com Trump, além de um desastre político, será uma tragédia econômica e moral.

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