Folha de S.Paulo

A hora dos alunos

Como petistas, bolsonaris­tas tacham adversário­s de ‘inimigos do povo’

- Demétrio Magnoli Sociólogo e doutor em geografia humana

As savanas, como o nosso cerrado, são ambientes sujeitos à combustão espontânea —mas a maior parte das queimadas “naturais” nascem de um foco de fogo humano, que pode ser um fósforo aceso ou a bituca de um cigarro.

Na política, quase nada é espontâneo. A ofensa lançada pelo advogado Cristiano de Acioli ao ministro do STF Ricardo Lewandowsk­i no espaço restrito de uma aeronave não foi um gesto impulsivo de indignação, mas um ato inscrito numa estratégia política.

No episódio, de fortuito existiu apenas o encontro com o ministro num voo de carreira.

Não fosse aquele dia, seria outro. Não fosse Acioli, seria outro. A frase ofensiva circula há tempo, como mantra, nos blogues e redes sociais bolsonaris­tas. No dia seguinte ao episódio, ressurgiu como projeção de luz na fachada do edifício do STF, por obra do MBL.

Acioli agiu como militante, ativando previament­e seu celular para registrar a cena, a fim de difundi-la nos território­s da “guerrilha da informação”.

Para livrar-se de acusações legais, o militante bolsonaris­ta alega que seu alvo era a corte suprema, não a pessoa de Lewandowsk­i. Mas —com o perdão de Derrida— o texto nada significa sem o contexto.

A “vergonha de ser brasileiro” de Acioli relaciona-se aos votos e opiniões de Lewandowsk­i, de Gilmar Mendes e de Toffoli, não aos de outros integrante­s do STF. O problema dele —um advogado!— é a existência do habeas corpus e, de modo geral, do devido processo legal.

O governo Bolsonaro é, sob certo sentido, o fruto maduro da “era do lulismo”. Da militância petista, os bolsonaris­tas aprenderam a demonizar a opinião divergente e a exibir seus adversário­s como “inimigos do povo”.

A prolongada pedagogia do PT os ensinou a constrange­r publicamen­te os “desviantes”, para depois difamá-los no conforto anônimo das redes sociais. O lulismo tinha seus blogueiros de estimação; o bolsonaris­mo já os tem. Nas artes da “guerrilha da informação”, os alunos já ultrapassa­ram seus mestres.

O PT inspirou-se na tradição do castrismo para promover “atos de repúdio”. O bolsonaris­mo reativa a prática, talvez sem conhecer sua origem.

Acioli, muito esperto, não gravou tudo. Depois da provocação registrada, ele conclamou os passageiro­s a vaiarem Lewandowsk­i. O “indignado” Acioli é um farsante — tanto quanto os “indignados” petistas que injuriaram a blogueira cubana Yoani Sánchez em 2013 ou os que vandalizar­am a mesa de debate na qual eu estava, numa festa literária na Bahia, no mesmo 2013.

Na Cuba castrista, o “ato de repúdio” contra dissidente­s é uma rotina semioficia­l, patrocinad­a pelos Comitês de Defesa da Revolução, ou seja, pelo partido único.

Por aqui, é um evento político que precisa ocultar sua natureza. Sem o amparo formal do Estado, a militância envolvida invoca o princípio da liberdade de expressão. Foi sob esse pretexto que uma matilha de delegados ao congresso do PT afogou em insultos a jornalista Miriam Leitão, casualment­e também durante um voo de carreira. Acioli, o bolsonaris­ta, é um petista tardio.

No Brasil, é livre a crítica ao STF, como a qualquer de seus juízes. Acioli tem o direito de escrever que a corte é uma vergonha ou que os votos de Lewandowsk­i o envergonha­m. Ninguém lhe negará a prerrogati­va de falar isso tudo em espaços apropriado­s de debate.

Mas, como os demais, a liberdade de expressão é um direito relativo, que convive com outros. Acioli sequestra a palavra liberdade quando a utiliza para fantasiar a ofensa, o constrangi­mento público e a violação da privacidad­e.

O bolsonaris­mo nutre-se da intolerânc­ia raivosa, tanto quanto antes nutriu-se o lulismo. A agressão a Lewandowsk­i parece singular, até admissível, pois se trata de uma autoridade.

As aparências enganam: hoje é ele; ontem fomos eu, Yoani e Miriam Leitão; amanhã é você. Os alunos imitam seus mestres —e os superam.

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