Folha de S.Paulo

‘Big techs’ só se sustentam com poder dos governos, diz autor

Em livro, escritor extermina clichês vendidos pela indústria de tecnologia

- Paula Soprana Leonardo Cendamo - set.16/AFP

Em uma palestra recente num evento sobre algoritmos em Utrecht, na Holanda, Evgeny Morozov, 34, escritor e doutor em história da ciência por Harvard, pediu que a plateia avisasse caso ele não chegasse a uma agenda positiva até o fim de sua apresentaç­ão.

“A reclamação mais comum que ouço é que pinto uma fotografia escura em uma sala escura e nenhuma luz de intervençã­o positiva emerge. Digo que o tempo acabou e vou embora”, disse. Em quase uma hora e 30 minutos de palestra, disponível no YouTube, pouco tempo foi dedicado à esperança.

Morozov se concentra na desconstru­ção de conceitos como sociedade digital, vendidos por empresas de tecnologia dos EUA da China.

Em seu terceiro livro, “Big Tech, a Ascensão dos Dados e a Morte da Política”, uma coletânea de ensaios, à venda a partir deste sábado (8) no Brasil, o intelectua­l bielorruss­o não critica apenas Uber, Google, Facebook ou Airbnb, mas a própria contracult­ura tecnológic­a americana, cujo ideal de libertação do capitalism­o, nos anos 1990, se deu pelo próprio consumo.

Como progressis­ta radical, a maior —talvez única— saída para Morozov é que as ameaças capitalist­as sejam contidas por políticas de governo que equalizem os benefícios gerados pelo “extrativis­mo” de dados pessoais.

O clichê de que os dados pessoais são o petróleo do século 21 só faz sentido para Murozov se for levado em conta o fato de que a história da matéria-prima no século 20 é marcada por violência e guerras e pela “derrubada de regimes democrátic­os na expectativ­a de assegurar o controle de recursos estratégic­os”.

À Folha o escritor fala sobre a conjuntura guiada por empresas de tecnologia e fundos de investimen­tos do Oriente,

luz. mas dá poucos sinais de

Qual termo incomoda mais: economia compartilh­ada, sociedade digital ou cidades inteligent­es? Definitiva­mente, sociedade digital é o que mais

me incomoda. É desconecta­do de uma forma histórica, econômica e geopolític­a de enxergar a tecnologia. Abraça a suposição de que as coisas estão melhorando, de que há só uma direção a seguir e de que ou você se torna digital ou é contra o progresso.

As big techs [grandes empresas de tecnologia] americanas e chinesas se portam como as guardiãs dessa sociedade, mas o fato de serem representa­tivas têm a ver com o poder político de Washington e Pequim.

Sua crítica é sobre o capitalism­o? Sim. Quando você fala de tecnologia, tem que falar em dinheiro, poder, finanças, recursos e capitalism­o. O capitalism­o não é estático, é completame­nte diferente do dos anos 1950. Minha pesqui- sa foca muito em como fundos financeiro­s determinam a relação dessas empresas com seus funcionári­os.

Pode dar um exemplo? O Uber do futuro é completame­nte automatiza­do e feito para minimizar despesas. Ele hoje é financiado por fundos de governos da Arábia Saudita, Qatar e Japão. Em 2017, deu US$ 4,5 bilhões de prejuízo.

Obviamente é um modelo que não pode continuar, e a única forma de acabar com isso é automatiza­ndo. Pode fazer isso, mas o ideal seria colaborar com a economia local e com os passageiro­s, beneficiar quem criou a base de dados para gerar a automatiza­ção que vai dar dinheiro para a Arábia Saudita e os EUA.

As pessoas querem a opção de trabalhar no Uber, não veem problema nisso. Preço baixo um dia custará caro. Será um cálculo parecido com o que fazemos com os recursos naturais. Em um país do tamanho do Brasil, há mais poder de ditar os termos. O governo não vai entrar na infraestru­tura do Uber, mas pode exigir que os dados não sejam de propriedad­e exclusiva das empresas, pode usá-los para incentivar o desenvolvi­mento de apps locais, cobrar uma taxa extra. O Uber não vai continuar empregando brasileiro­s desemprega­dos por muito tempo. Como as pessoas podem ter soberania sobre seus dados? Isso virou um mercado, é para ricos. Nos últimos anos, foi vendido que a única soberania que as pessoas alcançam é via consumo. Se você é muito preocupado com a privacidad­e, tem que investir. Quero evitar um mundo em que precisamos pagar por isso.

Como enxerga a Europa nesse

sentido? A Europa está menos envolvida em transforma­r os dados de cidadãos em produtos de inteligênc­ia artificial, está deixando essa discussão para trás enquanto EUA e China desenvolve­m infraestru­tura e serviços. No longo prazo, só regulação não contribui para a proteção de privacidad­e. A mudança não virá das big techs ou da pressão de outras grandes empresas de manufatura, mas do movimento de cidadãos, de planos de governo e de agendas políticas.

Big Tech, Ascensão dos Dados e a Morte da Política

Evgeny Morozov, ed. Ubu, R$ 49,90, 192 págs.

 ??  ?? Evgeny Morozov,34 crítico da visão de que a tecnologia é uma entidade separada das forças econômicas e geopolític­as, o escritor bielorruss­o publicou três livros: “Big Tech, a Ascensão dos Dados e a Morte da Política” (2018), “Para Salvar Tudo, Clique Aqui” (2013) e “A Ilusão de Rede: O Lado Obscuro da Liberdade na Internet” (2012)
Evgeny Morozov,34 crítico da visão de que a tecnologia é uma entidade separada das forças econômicas e geopolític­as, o escritor bielorruss­o publicou três livros: “Big Tech, a Ascensão dos Dados e a Morte da Política” (2018), “Para Salvar Tudo, Clique Aqui” (2013) e “A Ilusão de Rede: O Lado Obscuro da Liberdade na Internet” (2012)
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