Professores recorrem a Uber e construção para pagar contas
“Minha filha, aqui a gente dá uns pulos.” Assim, Cícero Ferreira de Lima resume seu malabarismo para fechar as contas do mês sendo professor de educação física na escola estadual Alberto Caldeira, em Farias, distrito de Guanhães (MG).
Quando não está dando aula, ele assenta pisos de cerâmica, chapisca paredes e dá o acabamento com reboco em casas da cidade. Apareceu um problema com a bomba hidráulica ou o chuveiro encrencou? Lá está Cícero.
O professor também faz corridas com seu Corsa até Guanhães, a 45 quilômetros por estrada de terra. Cobra R$ 100. “Falar pra você que compensa, compensa não”, diz. “Aqui a gasolina é cara, a estrada de chão não presta, faço mais para ajudar quem precisa.”
O guanhanense fala como se necessitado não fosse. Mas, aos 40 anos, tem apenas um cargo como contratado. São 17 aulas por semana, pelas quais ganha R$ 1.600. Professor há quase uma década, diz que, financeiramente, seria melhor se concentrar na função de pedreiro. “Mas eu adoro estar com os meninos na escola, é a melhor coisa que existe.”
A mulher, Danúbia da Costa Teixeira, 34, leciona na mesma instituição, mas como concursada, e nos períodos da manhã e da noite. Suas aulas de português lhe rendem R$ 2.000, que são pagos em três parcelas ao longo do mês.
Acontece que a soma salarial dos dois não garante o sustento do casal nem dos filhos, de 11 e 4 anos. Então, quando aparece, Danúbia faz palestras para o Sebrae, pelas quais recebe em média R$ 150, corrige redações do Enem e presta assessoria em trabalhos de conclusão de curso.
De olho numa melhor formação, ela faz doutorado em linguística teórico-descritiva na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte. Como o governo cortou as bolsas da Capes, Danúbia vende bananas verdes fritas na faculdade para custear a viagem e aceita a guarida dos professores para dormir na casa deles na capital.
A jornada do casal reflete o jeito que os educadores brasileiros encontram para sobreviver aos contratos precários e à baixa remuneração. Para José Marcelino de Rezende Pinto, professor da USP com experiência em política e gestão educacional, o problema remonta ao século 19.
De fato, em 1891, o médico, jornalista e historiador José Ricardo Pires de Almeida já denunciava “a função mal remunerada que não encontra na opinião pública a consideração a que tem direito muito mais que as outras”. A questão, porém, não se resolveu. “Vivemos uma crise crônica de remuneração”, diz Rezende.
O sociólogo Ricardo Antunes, da Unicamp, aponta o período da ditadura militar como um divisor de águas. “A ditadura, no seu conjunto, tinha a ideia de incentivar as escolas privadas, o que debilitou as chamadas escolas de aplicação, que ensaiavam um projeto público mais qualitativo.”
Segundo Antunes, os governos que se sucederam não enfatizaram uma política de recuperação do que se perdeu em termos de excelência.
Uma conquista a apontar é a lei nº 11.738, de 2008, que instituiu o Piso Salarial Profissional Nacional e estipulou um valor abaixo do qual nenhum professor deve receber. Em 2009, ele era de R$ 950; hoje, perfaz brutos R$ 2.455 para 40 horas semanais.
“Mas atualmente apenas 66% dos municípios cumprem o piso e somente 14 estados remuneram o mínimo previsto em lei”, diz Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
Ela explica que muitas cidades de pequeno porte têm dificuldade de arrecadação, um dos motivos para não pagar o mínimo. Já nos grandes centros, cumpre-se o piso, mas ele está muito aquém de atender a condições de vida com moradia, transporte, alimentação e acesso à cultura.
Anna frisa que é preciso garantir a valorização gradual dos salários e a incorporação das gratificações, que, diz, são muitas vezes utilizadas para não aumentar o salário-base.
O professor de matemática e física Alexandre Gonçalo Santana, 47, mora no Rio de Janeiro, capital de um estado cuja calamidade financeira está diretamente relacionada com a precariedade do professorado. Dono de apenas uma matrícula, conseguia se manter por meio das horas extras que fazia.
“Eu fazia dobra nas escolas, tinha isso como um salário que compreendia todos os meus custos, até alguns passeios”, diz. Mas, há um ano, ele perdeu essas horas extras — que não são incorporadas ao salário na aposentadoria— e não conseguiu mais pagar suas despesas com a remuneração de docente em Nilópolis.
Alexandre vendeu o carro e comprou outro adaptado para gás, mais econômico. Hoje ele roda como Uber no contraturno das três aulas semanais e não descansa nos fins de semana. Acrescentou cerca de R$ 2.000 das corridas ao salário de R$ 4.000, além de R$ 600 por mês com as três aulas por semana que dá a presos do Complexo de Bangu.
Estudo do Todos pela Educação mostra que 29% dos 2.000 entrevistados têm ocupações extras para complementar a renda. Desses, 9% focam atividades educacionais, como Danúbia, 5% se voltam ao comércio, como os colegas dela, e 3% prestam serviços, como Cícero e Alexandre.