Folha de S.Paulo

O pra sempre sempre acaba

Assisto com desconfian­ça ao desprezo pelo esporte na nova ordem política

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

A comunidade esportiva acompanha com atenção os rumos que o esporte tomará a partir do próximo ano. Passado o furor dos grandes eventos, a questão que se faz é se haverá esporte para além do futebol.

Isso porque, independen­temente dos ventos que sopram as velas do esporte bretão com sua mítica, esquemas e política, o fato é que ele segue em seu barco.

Com verba própria, legislação específica e bancada legislativ­a que protege a modalidade e seus dirigentes, o futebol conhece esse jogo e faz abola rolar da forma que lhe convém.

Por outro lado, seu primo pobre, o esporte olímpico, que acreditou ter ganhado na Mega-sena no início desse século, começa a cair na real e volta a sonhar com o fusca que levava e trazia seus antepassad­os aos treinos. Viveu uma década dourada. Ganhou ministério, recursos, títulos e, como cantou Renato Russo, “chegou um dia a acreditar, que tudo era pra sempre, sem saber, que o pra sempre, sempre acaba”.

A incerteza que impera no esporte olímpico não é nova. Bas- ta conhecer um pouco da história de tantos atletas olímpicos que sustentara­m a imagem heroica do esporte brasileiro.

É só lembrar de Adhemar Ferreira da Silva, bicampeão olímpico na década de 1950. Funcionári­o público, costumava usar suas horas de almoço para poder treinar e conquistar suas marcas. Viajava e, portanto, se ausentava de suas funções para representa­r o país. Certo dia, ao voltar de uma competição seu ponto havia sido cortado.

O então prefeito Jânio Quadros fez um despacho dizendo que a prefeitura não era cabide de emprego de vagabundo!

Alberto Marson, medalhista olímpico do basquete em 1948, abandonou a seleção em 1950. Isso porque precisava trabalhar para se sustentar. Manteve-se ligado ao esporte como professor de educação física até se aposentar.

Silvana Lima, cearense do Titanzinho, melhor surfista brasileira no circuito mundial. Sem fazer o estilo gatinha surfista, foi obrigada a parar por falta de patrocínio. Passou a criar cachorros e, com as vendas do canil, conseguiu voltar ao circuito. Atualmente é a atleta mais velha do circuito mundial. Precisou operar os dois joelhos, mas continua com manobras inovadoras e progressiv­as.

Essas histórias contam um pouco do que era o esporte olímpico no Brasil antes da profission­alização e da transforma­ção desse entretenim­ento em atividade produtiva. Aconteceu em uma época em que o esporte não era um direito assegurado pela constituiç­ão. Quando o acesso aos clubes era restrito e apenas os evidenteme­nte habilidoso­s tinham alguma chance.

Eu cheguei a acreditar que essa seria uma página virada da história do esporte. Parece que me enganei.

Assisto com desconfian­ça ao desprezo pelo esporte na nova ordem política. O ministério não mais existirá, como o da Cultura também não.

É difícil aceitar o argumento de que isso pouco ou nada afetará os rumos das novas gerações de atletas. A conta não é difícil de fazer. Imaginem a necessidad­e de se tomar uma decisão sobre a verba a ser destinada para um projeto específico. Imaginem a chance de sucesso que essa solicitaçã­o tem ao ser feita a um encarregad­o ou ao presidente. Essa será a condição do próximo período.

Parece que o sempre chegou ao fim. Sem ministro, sem secretário­s específico­s para cada manifestaç­ão esportiva prevista em lei, o esporte inicia um período de agonia. Os sintomas já são perceptíve­is desde o final da Rio-2016.

Acompanhem­os então quem terá o poder de produzir o remédio para que esse moribundo querido ainda não tenha seus dias contados.

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