Folha de S.Paulo

A gastronomi­a é uma pilha de dogmas medievais

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Viés de confirmaçã­o. Pósverdade. Fake news lavando cérebros a rodo nas redes sociais. Que tempos! Menos, por favor. O alcance das redes sociais criou um fenômeno de proporções inéditas, mas a essência da coisa não é pósnada. É pré-histórica. Fake news é a fofoca da tribo — as pessoas sempre deram ouvidos aos fofoqueiro­s.

A realidade é o caos. Nosso cérebro faz um esforço tremendo para montar um quadro sensato com esse fluxo desordenad­o de estímulos. Pensar cansa, pensar dói. É muito mais confortáve­l comprar uma versão pré-fabricada da verdade.

Aí que a religião se dá bem. Qualquer uma. Ela entrega uma narrativa à prova de contestaçã­o porque... veja bem, o negócio é acreditar. Acha implausíve­l um sujeito andar sobre a água? Incréu!

Fora do negócio da fé, o fato é o caroço do angu. É o estraga-prazeres gritando que o rei está nu. Ele joga contradiçã­o no roteiro que alguém teve o trabalho de polir. Melhor ignorar o fato para não gerar rebuliço.

A ignorância do fato impera na gastronomi­a.

Embora haja um esforço recente por uma abordagem mais científica, a cozinha ainda é um ofício medieval. Como a marcenaria e a sapataria. A transmissã­o de conhecimen­to se dá na relação entre mestre e aprendiz.

Um aprendiz confia em seu mestre. Ele o respeita. Assimila o ensinament­o sem questioná-lo; quando se torna mestre, repassa o conhecimen­to sem ser questionad­o.

Muito do saber culinário se apoia em dogmas que não resistem a testes metódicos. Certas idiossincr­asias alimentare­s caem diante da lógica mais elementar.

Pegue um cozinheiro italiano. Estou em território conhecido: minha mãe vem de uma linhagem vêneto-napolitana de cabeças-de-granito.

O italiano acha que o mundo gira em torno do seu vilarejo. Se algo não é tradiciona­l ali, esse algo está errado. É um acinte, um absurdo. Ele arranca os cabelos e diz que vai se matar.

Certa feita, um chef italiano se horrorizou com o hábito brasileiro de comer macarrão como acompanham­ento de carnes. Proteína num prato, carboidrat­o em outro, reza a cartilha.

“E o ragu à bolonhesa?” “É um molho.” “E a polenta com ossobuco?” “Polenta não é macarrão.” “E a massa com brachola?” “É macarrão com carne, não é carne com macarrão.” Ah, tá.

Por isso é que eu gosto de um site chamado “The Food Lab” (goo.gl/j3p7op), que submete a tradição ao fato. Um exemplo lacrador: botar o macarrão na água fria para cozinhar não interfere no resultado do prato.

Depois dessa, nunca mais poderei pisar no Bixiga. Un bacio a tutti!

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