Folha de S.Paulo

Reinaldo Moraes lança novo romance dez anos depois de ‘Pornopopei­a’

Escritor abandonou livro sobre bicheiro morto para transforma­r roteiro em três volumes

- Úrsula Passos Alcir Pécora Rahel Patrasso/Acervo Pessoal Painel das Letras O colunista Maurício Meireles está em férias

Em uma conversa de bar, um jovem cineasta pede um roteiro com putas e drogas a um escritor já consagrado que escrevia um novo romance sobre um bicheiro morto que vai para o céu. Ao que ele responde: “Deixa comigo”.

E foi assim que nasceu o novo romance de Reinaldo Moraes, “Maior que o Mundo”, lançado agora, dez anos depois do sucesso do calhamaço “Pornopopei­a”.

A história que já tem 1.200 páginas —1.237 em arquivo de Word, para sermos exatos—, adaptada de um roteiro de 120, virá na forma de três volumes. O segundo deve chegar às livrarias no próximo ano.

“Eu estava escrevendo um romance um tanto pretensios­o, meio confuso, a história de um bicheiro que vai para um céu esquisito, uma coisa enrolada que já tinha 600 páginas”, conta Moraes em seu apartament­o em São Paulo.

Ele largou mão do contravent­or para investir cinco anos transforma­ndo em livro seu roteiro agora já filmado por Roberto Marquez —o cineasta no bar—, com Eriberto Leão e o cantor Otto no elenco, e hoje em fase de pós-produção.

O escritor de 68 anos, autor também de “Tanto Faz”, dos anos 1980, volta a diversas das caracterís­ticas presentes no elogiado “Pornopopei­a”. Entre elas, uma narrativa na qual muito é descrito no desenrolar de poucos dias, e um personagem porra-louca em crise criativa que vaga, transa e se embebeda pelas ruas de São Paulo.

“Eu comecei a escrever e a cagar para as semelhança­s, porque elas são meramente de trama. A carne do livro não tem nada a ver com a de ‘Pornopopei­a’, é outro tipo de dicção”, diz Moraes. “Neste livro o problema é a literatura”, completa.

De fato, o que acompanham­os é a busca do escritor Kabeto, que já lançou um romance de sucesso, por uma musa inspirador­a, uma frase genial que introduza seu novo romance. Voz narrativa, plágio e outras questões literárias estão colocadas ali.

Já sobre o protagonis­ta picaresco —que inspira o escritor desde quando, criança, leu a história de Pedro Malasartes na biblioteca da casa de uma tia, seguindo para personagen­s como Macunaíma, o sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade— Moraes diz que, dessa vez, o pícaro vem amenizado pela idade.

Kabeto é um cinquentão que largou a cocaína, meio cansado e reflexivo. Ele anda com gente bem mais nova que ele e, num mundo diferente daquele no qual foi jovem, é questionad­o pelos amigos por posturas e frases machistas e politicame­nte incorretas, que, segundo Moraes, “saem pelo ladrão”.

Ao final, Kabeto encontra por acaso um texto que ele, apaixonado pela primeira frase redonda e direta, resolve roubar para si. O segundo volume é a história desse autor do livro abandonado.

“Embora seja um mesmo livro dividido em três, acho que é uma trilogia no sentido forte da palavra, livros que têm historias conectadas mas cada um tem um estilo”, diz Moraes.

O bicheiro morto, a quem interessar possa, não foi deletado e ainda tem chances de chegar às livrarias.

CRÍTICA

Maior que o Mundo: Volume 1 Autor: Reinaldo Moraes. Companhia das Letras. R$ 74,90 (456 págs.) Cássio Adalberto Castanho, vulgo Kabeto, o narradorpe­rsonagem de “Maior que o Mundo”, novo romance de Reinaldo Moraes, é um escritor paulistano que teve um grande sucesso literário no passado, e que, aos 53 anos, sofre um longo bloqueio criativo que atribui à falta de uma primeira frase genial que lhe daria uma espécie de passe livre para um novo grande romance.

Por ora, enquanto amarga o longo intervalo entre o êxito antigo e a desejada primeira frase mágica, Kabeto trabalha numa editora de revistas customizad­as em regime quinzenal: 15 dias dando duro e 15 dias à base de cerveja e steinhäger no seu bar favorito, o Farta Brutos, pontuados com maconha e sexo eventual com a amiga Mina ou outra garota que logre levar à quitinete onde mora, solitário.

De resto, continua a sua “quest” pela frase encoberta, enquanto na avenida Paulista eclodem as manifestaç­ões de Junho de 2013, que não chegam a interessá-lo.

Variando entre a primeira e a terceira pessoas narrativas, por meio das quais Kabeto tagarela da tarde de sextafeira à de domingo, ao sabor de ideias e piadas de ocasião, “Maior que o Mundo” ganha o aspecto predominan­te de um chorrilho intermináv­el de humor obsceno.

Mas é possível distinguir, a contrapelo do fluxo boquirroto, uma sequência complexa de três partes, articulada­s engenhosam­ente entre si.

A primeira delas mostra Kabeto registrand­o num velho gravador as impressões que lhe vêm à cabeça no seu trajeto a pé, desde a rua Teodoro Sampaio até o bar, nas imediações da praça Roosevelt. Na descida da Augusta, Kabeto decide incrementa­r a sua estratégia de gravação inserindo-a numa performanc­e destrambel­hada.

Irrompe então numa academia de ginástica e num cabeleirei­ro unissex, enunciando em voz alta uma teoria improvisad­a a respeito de futuras clonagens de bebês, na qual aventa toda sorte de clichê machista e feminista.

A segunda parte, já sem o gravador ligado, é um relato de bebedeiras, com início no bar, onde o amigo Park o desafia a quebrar o bloqueio, escrevendo ao léu dez páginas por dia, durante 15 dias.

Após a chegada de Mina, os três vão a um inferninho onde se apresenta a banda de que Park é letrista. Por fim, acompanhad­os de uma jovem fã do seu primeiro livro, acabam na quitinete de Kabeto, também na região da Roosevelt, animados para uma orgia cujo desfecho sai às avessas do esperado.

A terceira parte é a mais variada e inclui, em sequência: Kabeto sofrendo de priapismo, em visita à mãe viúva no Belenzinho, via avenida Celso Garcia; um retorno ao bar, onde tem rápido entrosamen­to sexual com um casal desconheci­do; uma passagem confusa pela área perigosa do Glicério, de onde tenta retornar à casa.

Por fim, numa ladeira, já perto da Brigadeiro com a Treze de Maio, Kabeto encontra, jogado numa caçamba, um caderno preenchido à mão. Abrindo-o, acredita encontrar não apenas o milagre da primeira frase, como um romance inteiro escrito em português primário, mas cheio de estilo.

Cada uma das três partes do romance responde a uma expectativ­a de superação do bloqueio criativo de Kabeto: na primeira, espera que advenha da experiênci­a com o espaço físico e social da cidade; na segunda, associa-a à experiênci­a pessoal excitada pela velha fórmula de sexo, drogas e rock’n’roll. Já na terceira, vem na forma do relato de alguém desconheci­do.

A rigor, o gesto de roubar o romance alheio fornece um tipo de resposta que enterra de vez as suas pretensões como autor, ainda que não as de ter sucesso.

Mais que isso, faz com que reencontre junto à primeira frase não a sua grande criação, mas aproximada­mente o mesmo trabalho medíocre dos últimos 20 anos como redator ou copidesque.

Mas essa é somente uma hipótese para uma história ainda em andamento, que pode alterar o seu rumo. Há algo, contudo, que já não pode ser alterado: “Maior que o Mundo” é um ótimo romance etnográfic­o do centro de S-

ão Paulo, em versão gonzo.

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O escritor Reinaldo Moraes brinca com um de seus gatos em sua casa, em São Paulo

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