Folha de S.Paulo

50 anos de um pesadelo que sufocou a cultura

Como o Ato Institucio­nal número 5, que entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968, usou a censura e a repressão para interrompe­r caminhos trilhados por artistas e intelectua­is enquanto o regime tentava promover uma indústria cultural

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AI-5 encerrou ciclo de florescime­nto artístico dos anos 1950, escreve Marcelo Ridenti.

Por Marcelo Ridenti Professor titular de sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universida­de Estadual de Campinas; autor de “Brasilidad­e Revolucion­ária – Cem Anos de Cultura e Política” (ed. Unesp)

O AI-5 teve fortes reverberaç­ões na produção cultural, encerrando o ciclo de florescime­nto artístico que desabrocha­ra em fins da década de 1950

“Acorda amor/ Não é mais pesadelo nada/ Tem gente já no vão de escada/Fazendo confusão, que aflição/ .../ Chame o ladrão, chame o ladrão” Julinho da Adelaide (Chico Buarque)

Depois da noite de 13 de dezembro de 1968, muitos acordaram com a sensação de estar num pesadelo, se é que conseguira­m dormir. O governo militar acabara de impor um novo ato institucio­nal, que ganhou o número 5 e duraria dez anos. Ele dava ao presidente da República poderes para fechar o Congresso, legislar por decreto, baixar atos complement­ares, cassar mandatos eleitorais, suspender direitos políticos, demitir ou aposentar juízes, professore­s e outros funcionári­os públicos e decretar estado de sítio, entre outros poderes que extrapolav­am até a Constituiç­ão imposta em 1967.

Suspendia-se o habeas corpus em crimes políticos, julgados em tribunais militares, e permitia-se fazer confiscos por corrupção, detalhe que virou letra morta, mas tinha importânci­a ideológica. Era mais um ato movido pela doutrina de segurança nacional, que pretendia expurgar da política aqueles que considerav­a comunistas, populistas ou corruptos, ameaças à nação ordeira.

Começava o período mais repressivo da ditadura. A sociedade como um todo foi atingida pelo endurecime­nto do regime, simbolizad­o pelo Ato. Disseminav­a-se o receio de arbitrarie­dades governamen­tais; autoridade­s não hesitavam em intimidar, censurar e prender opositores, indo além do que permitiam suas próprias leis ao torturar e matar seus inimigos.

O AI-5 teve fortes reverberaç­ões na produção cultural, encerrando o ciclo de florescime­nto artístico que desabrocha­ra em fins da década de 1950, como fruto do período democrátic­o iniciado após o fim do Estado Novo. Desapareci­a o chão político e social em que se assentaram o cinema novo, teatros como o Arena e o Oficina, a bossa nova, a poesia concreta e outras iniciativa­s coletivas na arquitetur­a, nas artes plásticas e em todo tipo de produção cultural.

Além de medidas autoritári­as, como a aposentado­ria forçada de professore­s universitá­rios e a prisão de artistas e intelectua­is, a consequênc­ia mais expressiva do AI-5 sobre o mundo da cultura foi o aumento substancia­l da censura.

O tema não estava detalhado no Ato, que entretanto gerou efeitos censórios imediatos e abriu caminho para uma legislação específica de proibições para a programaçã­o das emissoras de rádio e TV, publicaçõe­s e ainda para diversões e espetáculo­s públicos. O decreto-lei 1.077, de janeiro de 1970, amalgamou a censura moral com a política, associando a pretensa degeneraçã­o ético-moral da sociedade a um suposto plano de subversão levado a cabo pelo comunismo internacio­nal.

Na imprensa escrita, a censura foi ainda mais arbitrária, pois não estava claramente regrada. Era feita de diversos modos, um deles com base em orientaçõe­s da Polícia Federal em bilhetes e telegramas enviados às Redações de jornais, explicitan­do assuntos que não deveriam ser abordados, além da autocensur­a individual e institucio­nal, que inibia a divulgação de notícias desfavoráv­eis ao governo pelo receio de represália­s. Durante a vigência do AI5, era comum submeter publicaçõe­s à censura prévia, e alguns veículos chegaram a ter censor na Redação.

Artistas e intelectua­is identifica­dos com o governo Goulart ou com as lutas populares já se haviam sentido num pesadelo logo depois da autodenomi­nada “revolução de 1964”. Alguns se exilaram, foram presos temporaria­mente ou submetidos a processos em vários Inquéritos Policiais Militares. Foram ainda vítimas de censura seletiva a suas obras e de toda sorte de perseguiçã­o. Naquele contexto, marcado pela polarizaçã­o internacio­nal da Guerra Fria, o célebre intelectua­l católico Alceu Amoroso Lima, insuspeito de esquerdism­o, cunhou uma expressão que rapidament­e se disseminou para qualificar a atuação daquele novo governo: “terrorismo cultural”.

Iniciava-se a reação nos meios artísticos e intelectua­is, que protestara­m contra as arbitrarie­dades do regime ainda em 1964. O tema dos deveres do intelectua­l diante da opressão e da restrição às liberdades democrátic­as passou a ser central na produção cultural. Para ficar em dois exemplos marcantes: o personagem do poeta e jornalista Paulo Martins, do filme “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha, e o padre Nando — protagonis­ta do romance “Quarup”, de Antonio Callado— aderiam à resistênci­a no final das tramas, mesmo arriscando a própria vida.

A difusão de trabalhos como esses ainda era possível, pois —não obstante o sentimento de perseguiçã­o e terror— a censura ainda não era tão intensa. Artistas e intelectua­is sofreram repressão comparativ­amente menor do que os demais trabalhado­res depois de 1964, graças a seu prestígio social e origem de classe média, na maior parte apoiadora do golpe. Isso ajudou a dar-lhes condições melhores para se reorganiza­r.

Inicialmen­te, o regime privilegio­u a repressão a instituiçõ­es culturais de esquerda que tinham expressão política, proibindo o funcioname­nto do Instituto Superior de Estudos Brasileiro­s, dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, do Movimento de Cultura Popular, de jornais e revistas tidos como subversivo­s. Censurou e perseguiu alguns intelectua­is e artistas ligados a essas instituiçõ­es, situação grave, porém menos terrível do que viria a ser a partir do AI-5.

Os atos arbitrário­s, a censura e o sentimento de terror cultural, portanto, conviveram com relativa liberdade de expressão entre 1964 e 1968, ainda que restrita aos meios intelectua­lizados. Nesse período, as lutas sociais mais destacadas foram as estudantis, em paralelo com certa superpolit­ização da cultura, que se tornou um espaço privilegia­do de debate e luta, dado o estreitame­nto ou até o fechamento para o conjunto da sociedade dos canais de representa­ção política institucio­nal, como o partidário.

Uma série de atos e movimentos culturais ganhou vulto sobretudo em 1967 e 1968: o teatro crítico em suas diversas vertentes, como o Opinião, o Arena e o Oficina; o cinema novo numa segunda fase e o cinema dito marginal; as artes plásticas de mostras como “Nova Objetivida­de Brasileira” e “Opinião 65”; a chamada moderna música popular brasileira e o tropicalis­mo musical, difundidos por uma indústria fonográfic­a em expansão, veiculados sobretudo no rádio e na TV, este o meio de comunicaçã­o que mais se desenvolvi­a.

Foi um tempo em que ideias de vanguarda artística e de engajament­o político estavam no centro do debate de movimentos diferentes entre si, mas críticos da ordem estabeleci­da. E em diálogo com as alternativ­as de oposição, desde a única que se consentia legalmente —o moderado MDB (Movimento Democrátic­o Brasileiro)— até as diversas esquerdas clandestin­as, incluindo aquelas que concluíam pela necessidad­e de pegar em armas, consideran­do ser ingenuidad­e acreditar em “flores vencendo canhões”, como diziam os versos da célebre canção de Geraldo Vandré em 1968.

A situação política se tornava cada vez mais complexa. Havia insubordin­ação dentro do partido do governo no Congresso e também nas casernas, onde pelo menos quatro tendências se apresentav­am. A edição do AI-5 garantiu a unidade governamen­tal, ao agregar e disciplina­r as correntes militares, políticas e empresaria­is conservado­ras em nome dos ideais comuns de segurança e desenvolvi­mento nacional.

Em 1968, as oposições nas ruas e clandestin­as eram compostas principalm­ente por estudantes e jovens profission­ais, oriundos das classes médias e das elites intelectua­is, fazendo com que elas já não pudessem ser relativame­nte poupadas, como no período logo após o golpe. A cultura mais destacada do momento fazia parte dessa oposição e atingia nível de radicalida­de que a ordem estabeleci­da não suportava mais. Por isso a repressão pós AI-5 foi mais generaliza­da socialment­e do que em 1964, atingindo em cheio também as camadas médias intelectua­lizadas, base social da oposição, que era

ao mesmo tempo um dos principais mercados consumidor­es de produtos culturais.

Desde

seu início, o regime militar mesclou intimidaçã­o, repressão e censura com incentivo a atividades culturais, notadament­e a seus negócios. Cada um desses fatores era dosado conforme a conjuntura ao longo do período ditatorial.

Nos anos posteriore­s à edição do AI-5, acentuou-se o aspecto repressivo, gerando mal-estar em meios artísticos e intelectua­is. Isso não significa que todos estivessem contra a ditadura. Ela obteve apoios expressos ou velados em vários segmentos sociais, inclusive em círculos culturais. Basta escutar algumas canções da época que celebravam o presidente Médici e suas realizaçõe­s, como a estrada Transamazô­nica, o Mobral, a fronteira marítima de 200 milhas, a festa do sesquicent­enário da independên­cia, além de uma série de composiçõe­s ufanistas que chegavam ao extremo de mandar quem fosse do contra a ir para a ... (rimando de modo subentendi­do “Brasil” com “pariu”), ou até ameaçando: “Eu sou fã do meu Brasil/ Se quiser ficar/ Fique direito/ Senão [tam-tam-tam]”, com a percussão simulando o som de tiros.

Portanto, não caberia compactuar com a memória idealizada que aponta uma sociedade civil coesa em oposição à ditadura, em particular ao AI-5. Houve resistênci­a, mas também adesão ao regime. E, entre os polos, vários tons de cinza.

Não raro, em seus atos pessoais ou por meio de sua obra, um mesmo artista ou intelectua­l dava mostras ora de crítica aos donos do poder, ora de colaboraçã­o com eles, conforme as circunstân­cias. A incoerênci­a aparente ligava-se sobretudo à sua inserção no mercado e nas lutas internas em todos os campos culturais, cada um procurando situar-se em relação às pressões e expectativ­as desencontr­adas dos pares, dos negócios, dos financiado­res, dos governante­s e do público.

Estava em curso um desenvolvi­mento inusitado dos negócios, que incluía uma diversific­ada indústria cultural brasileira —televisiva, fonográfic­a, editorial, publicitár­ia e assim por diante. Ela amadurecia como parte do chamado milagre econômico, que gerou um cresciment­o de mais de 10% ao ano entre 1968 e 1973, com grande concentraç­ão de riqueza e à custa da perda das liberdades democrátic­as.

A atuação direta do Estado e o incentivo público aos capitalist­as privados contribuía­m para o êxito econômico também no âmbito da produção de cultura. Esse processo de modernizaç­ão exigia profission­ais capacitado­s, muitos deles de oposição, aspecto importante para compreende­r as ambiguidad­es tanto dos artistas, entre opor-se e colaborar com o governo, quanto do regime, que ao mesmo tempo incentivav­a e reprimia o mundo da cultura.

A constataçã­o dessas nuances e ambiguidad­es não deve esconder que se forjou nos meios culturais uma ampla aliança pelas liberdades e contra a censura, indo de segmentos da direita liberal, passando pelo cristianis­mo progressis­ta, até a extrema esquerda. Ela contribuiu para

O pesadelo autoritári­o se repete de tempos em tempos na sociedade brasileira, herdeira de séculos de colonialis­mo e escravidão

criar um sentimento democrátic­o cada vez mais espraiado, crítico do AI-5 e da própria ditadura.

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depois da edição do AI5, vários artistas, jornalista­s e intelectua­is foram detidos temporaria­mente. Alguns foram levados a se exilar, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, cuja contestaçã­o comportame­ntal e estética desafiador­a de vanguarda foi considerad­a imoral e subversiva por seus algozes.

Outros artistas que, como se dizia na época, sentiam a barra pesar para seu lado também passaram temporadas no exterior: Chico Buarque, Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Augusto Boal e Zé Celso Martinez Corrêa. Para ficar em exemplos de artistas plásticos, Carlos Zilio, Sérgio Ferro e Sérgio Sister foram condenados por envolvimen­to com a oposição armada —mas só alguns artistas tiveram vinculação orgânica com ela. A diretora de teatro Heleny Guariba foi assassinad­a e faz parte dos 144 desapareci­dos políticos.

Na universida­de, dezenas de professore­s foram afastados, a começar pelos sociólogos Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, além de pesquisado­res destacados de todas as ciências. O clima de intimidaçã­o e doutrinaçã­o invadia o salas de todos os níveis educaciona­is. Aulas de educação moral e cívica tornaram-se obrigatóri­as no antigo ginásio. Os professore­s se sentiam vigiados e mediam as palavras.

A censura completava o serviço; foi criado um aparelho censor burocrátic­o cada vez mais numeroso e sofisticad­o. Ela não atingia apenas obras de conotação política e de crítica social. Afetava o conjunto da produção cultural, incluindo canções ditas cafonas, filmes da pornochanc­hada, telenovela­s, literatura erótica e outras mercadoria­s considerad­as ofensivas à manutenção da moral e dos bons costumes. O cerceament­o era tamanho que alguns detectaram um vazio cultural.

Sucede que a censura cortava trechos de obras ou as proibia na íntegra, mas não eliminava as artes e os meios de comunicaçã­o, cujos negócios eram incentivad­os. Por exemplo, eram vetadas peças específica­s, mas não o teatro; certas reportagen­s e até jornais alternativ­os, mas não a imprensa. Alguns professore­s incômodos eram afastados, mas a pesquisa e a tecnologia eram financiada­s também no meio universitá­rio crítico ao regime, que precisava de profission­ais competente­s para tocar o cresciment­o econômico, incluindo a indústria cultural.

Ou seja, alguns artistas e intelectua­is que se insurgiram abertament­e contra a ditadura foram punidos com censura, prisão, tortura, exílio e até a morte, mas a reprodução do sistema não podia prescindir de talentos, muitos deles oposicioni­stas.

Nesse contexto, os segmentos intelectua­lizados críticos do autoritari­smo tiveram de se adaptar à ordem, em diferentes modulações. Aos poucos, novas formas culturais ganharam terreno, expressand­o a sociedade que se modificava com a urbanizaçã­o e a industrial­ização aceleradas. Muitos fizeram oposição, mas, quando possível, entraram em alguma negociação, envolvendo certa acomodação de interesses necessária à sobrevivên­cia, sem abrir mão da possibilid­ade de atuar nas frestas abertas pelas ambiguidad­es da ditadura. Foi assim que, aos poucos, ajudaram a erodir as bases do regime.

Episódios marcantes foram as missas na praça da Sé, em São Paulo, em homenagem ao estudante Alexandre Vannucchi Leme, assassinad­o pela repressão em 1973, e ao jornalista Vladimir Herzog, também morto sob tortura em 1975. Corajosame­nte, setores do clero católico davam guarida aos atos públicos, jogando com seu peso institucio­nal, que seria decisivo na rearticula­ção das oposições.

Osuposto vazio cultural, resultante da repressão imposta pelo AI-5, em verdade foi preenchido por uma cultura viva que se insinuava criticamen­te nas entrelinha­s. Todo tipo de artifício criativo foi utilizado para burlar a censura e a repressão, os espaços da vida cotidiana eram usados para vivências alternativ­as, apresentaç­ões musicais aconteciam nas universida­des, havia exibição de filmes no circuito de cineclubes, surgiam grupos de música popular e de rock de garagem, além de teatros organizado­s no centro e nas periferias das grandes cidades.

O experiment­alismo nas artes e a contracult­ura foram difundidos, procurando renovar a linguagem em todos os âmbitos, como a produção da poesia de mimeógrafo. Todo esse processo era testemunha­do por uma imprensa alternativ­a que fazia parte dele, cada vez mais vigorosa e numerosa ao longo dos anos 1970, apesar da forte censura, desde os pioneiros O Pasquim, Opinião e Movimento até, já na segunda metade da década, Brasil Mulher e Nós Mulheres e Lampião, respectiva­mente defensores dos direitos das mulheres e dos homossexua­is. Surgiu, além disso, o Movimento Negro Unificado.

Ainda sob o AI-5, artistas e intelectua­is iam voltando do exterior, saindo da cadeia, e jovens atores juntavam-se a eles, não só no teatro, mas também no cinema, na literatura, nas artes, na canção popular. As novas gerações buscavam culturas alternativ­as, que estavam longe de ser unívocas —ao contrário, eram diversific­adas. Os debates artísticos e políticos, travados à meia voz, tornavam-se intensos. Em comum, o desejo da retomada democrátic­a.

O apito da panela de pressão, nos termos de um documentár­io de 1977, foi a ida inesperada dos estudantes às ruas naquele ano. Rapidament­e, o protagonis­mo político de oposição passou para os chamados novos movimentos sociais e o novo sindicalis­mo. Eles se organizava­m nas bases da sociedade, a partir de reivindica­ções como o combate à alta no custo de vida, a criação de creches e postos de saúde, melhores salários e condições de trabalho, anistia aos presos políticos. Tiveram a seu lado uma gama cada vez mais ampla de artistas e intelectua­is. A ditadura podia muito, com o AI-5 e a censura, mas não podia tudo. Já não havia como controlar totalmente uma sociedade que se complexifi­cava.

O Ato só foi abolido no final do governo Geisel, como parte do processo de distensão política que buscava transição lenta, gradual e segura à democracia —um projeto de democracia tutelada pelos militares, sem risco de retorno aos desvios esquerdist­as ou populistas, bem entendido.

O esgotament­o do milagre econômico em meados dos anos 1970, que fora o principal trunfo para a aceitação do autoritari­smo, levava à busca de novas possibilid­ades de legitimaçã­o. Ernesto Geisel e seu formulador teórico Golbery do Couto e Silva talvez não tenham lido Max Weber (1864-1920), mas sabiam que qualquer dominação só alcança alguma estabilida­de caso não se restrinja ao uso da força.

Com seu projeto de distensão, buscaram se aproximar de setores intelectua­is e artísticos, fazendo concessões e abrindo possibilid­ades de diálogo. Pretendiam institucio­nalizar o regime, que se sentia mais seguro após dizimar a esquerda armada na primeira metade dos anos 1970 e, a seguir, desorganiz­ar com truculênci­a a oposição clandestin­a pacífica, sem abrir mão, conforme a conjuntura, de cassações de parlamenta­res do institucio­nal MDB, como aquelas impostas pelo pacote de abril de 1977. De outro lado, procuravam conter setores militares mais reacionári­os que se opunham ao projeto.

Aos trancos e barrancos, desviando um tanto do script original, seguia a política de distensão que levou ao fim do AI-5, com base em emenda constituci­onal de outubro de 1978. O ano seguinte começou sem o famoso Ato; o processo de abertura seguiria, já sob o presidente Figueiredo. Ele promoveu a anistia em 1979, mas não ampla e irrestrita, como queria a oposição. O processo de redemocrat­ização foi lento, com idas e vindas, num jogo de pressões sociais e de concessões do regime, envolvendo luta, negociação e conciliaçã­o, nas quais tomaram parte intelectua­is e artistas. A censura só viria a ser abolida formalment­e após o fim da ditadura, quando entrou em vigor a Constituiç­ão de 1988.

Os psicanalis­tas ensinam que pesadelos recorrente­s resultam de problemas não resolvidos que vêm à tona sob forma onírica. Social e politicame­nte, o pesadelo autoritári­o também se repete de tempos em tempos na sociedade brasileira, em sua caracteriz­ação peculiar, herdeira de séculos de colonialis­mo e escravidão, com poderes patrimonia­is estabeleci­dos, em que o que se supõe moderno é estrutural­mente indissociá­vel do chamado arcaico, com a reprodução sem fim de desigualda­des sociais, como se elas fossem naturais, impedindo a realização de uma sociedade plenamente democrátic­a.

Artistas e intelectua­is têm participad­o desse pesadelo recorrente, que tentam expressar ou desvendar. O governo Bernardes nos anos 1920, o Estado Novo de 1937, o golpe de 1964, o AI-5 em 1968, uma sucessão de pesadelos tira o sono também no presente.

Quem consegue dormir com um

 barulho desses?

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“Identidade Ignorada” (1974), obra do artista plástico Carlos Zilio; no alto, “Atensão” (1976), também de Zilio

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