Folha de S.Paulo

Hoje em dia

História era aquilo que aconteceu há muito tempo

- Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”

Eu já tive medo de perder o emprego, de levar pé na bunda, de pegar dengue ou febre amarela, mas nunca, até um ou dois anos atrás, havia temido emburacar num período tenebroso da história.

História, eu pensava, era aquilo que aconteceu há muito tempo, quando o mundo era turbulento e confuso, antes de chegarmos a esta ilha de normalidad­e a que chamamos de presente. É como olhar para o próprio passado. Me vejo bem desajeitad­o na infância, perdido na adolescênc­ia, tenho vergonha alheia do carrinho de bate-bate em que me transforme­i lá pelos 20 e tantos, depois da separação, mas hoje me acho normalíssi­mo: hoje eu sou eu, “senhor dos meus domínios, rei do meu castelo”, comodiriao Seinfeldno­clássico episódio “The Contest”.

A impressão de estar no centro de uma placa tectônica da narrativa universal, imune a abalos sísmicos como revoluções, golpes ou guerras é ainda maior para quem nasceu no fim da década de 70. A modéstia me impede de sugerir qualquer relação de causalidad­e, mas desde que fui parido o mundo só melhorou. As ditaduras da América Latina caíram uma depois da outra, a cortina de ferro se abriu e o espetáculo que seria exibido sobre o novo palco geopolític­o, pensamos, era o cancã da democracia: liberdade de salto alto, oportunida­des de minissaia, tolerância de meia calça arrastão.

Até então éramos chamados de Terceiro Mundo, rótulo que sugeria um cenário estático, uma gaveta fixa na ordem mundial. Fomos rebatizado­s como um dos países em desenvolvi­mento: o avanço em direção ao final feliz, embora lento e desigual, era inexorável. Os “Winds of Change”, cantavam os Scorpions — com seus mullets seinfeldia­nos—, levariam a mudança aos quatro cantos do planeta.

Mas a história, como diria o poeta, é uma caixinha de surpresas. É o tal “conto narrado por um idiota, cheio de som e fúria e sem sentido algum”. E se o idiota estiver especialme­nte enfezado ultimament­e, sofrendo de azia, enxaqueca, unha encravada? E se nós estivermos vivendo o renascimen­to global do fascismo? E se os líderes populistas de extrema direita, em ascensão por toda parte, aproveitan­do-se da conexão total e desinforma­ção generaliza­da proporcion­adas pelas redes sociais, criarem nos próximos anos um sistema supranacio­nal digno de “1984”, de “The Handmaid’s Tale”, de “Fahrenheit 451”?

“Imagina!”, eu digo a mim mesmo. “Hoje em dia isso não seria possível!”. Então me dou conta de que não houve um só dia na história da humanidade que não tenha sido “hoje em dia”. Todo ser humano que já pisou sobre a terra, no momento em que tocava as solas no chão estava no posto de observação mais avançado que jamais existira: o presente.

Já mencionei em outra crônica a cena de um documentár­io com sobreviven­tes do holocausto, feito pela fundação Shoa, do Spielberg. Com seu avô, um garoto é trancafiad­o num vagão de carga lotado, sem bancos, janelas ou espaço para se mexer. O avô aperta a mão do garoto e tenta tranquiliz­á-lo: “Calma, estamos no século 20”. “Calma, estamos no século 21”, penso eu, mas aí lembro do destino daquele avô.

Espero estar enganado em meus anseios mais catastrófi­cos. Espero que essa semente protofasci­sta que está brotando nos EUA, na Hungria, na Polônia, na Turquia, no Brasil e em outros países seque antes de florescer. Espero que esses líderes farsescos sejam como o Kramer, amigo do Seinfeld. Uns bufões que entram com estardalha­ço, falam meia dúzia de abobrinhas sem pé nem cabeça e desaparece­m, sem maiores consequênc­ias para o rumo da história.

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Adams Carvalho

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