Folha de S.Paulo

CIDADE DE JOÃO DE DEUS VIVE CLIMA DE SILÊNCIO E INCERTEZA

Denúncias de abuso sexual contra médium deixam pacientes apreensivo­s em Abadiânia (GO), cuja economia gira em torno de centro espírita

- Natália Cancian Fotos André Coelho/Folhapress

Silêncio. A palavra, repetida como orientação de conduta em quadros e cartazes por todos os lados da Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), retrata parte do cenário na cidade de pouco mais de 15 mil habitantes desde que vieram à tona denúncias de abuso sexual envolvendo um dos médiuns mais famosos do país.

Nas ruas, poucos moradores do município cuja economia gira em torno das atividades de João de Deus, nome pelo qual é conhecido o médium João Teixeira de Faria, 76, aceitam falar abertament­e sobre o tema. Atribuem a decisão ao temor de represália­s e ao silêncio também de João, que fundou em 1976 a casa que funciona como hospital espiritual no município.

No sábado (8), 13 mulheres disseram ao programa Conversa com Bial, da Rede Globo, e ao jornal O Globo que o médium abusou sexualment­e delas em um escritório em uma parte separada do local.

O Ministério Público de Goiás informou que ele já era investigad­o desde junho por acusações de abuso e que os novos casos relatados à imprensa serão apurados.

Ao Fantástico uma promotora de Justiça de São Paulo disse ter recebido cerca de 200 relatos do tipo desde que as denúncias vieram à tona.

As denúncias abalaram a rotina em Abadiânia.

Por um lado, a Casa Dom Inácio, que recebe mais de mil pessoas por dia, tentava manter as atividades programada­s para o fim de semana. João de Deus atende às quartas, quintas e sextas-feiras.

Entre turistas e moradores, porém, o clima era de incerteza. Brasileiro­s e estrangeir­os se dividiam entre a defesa do médium e preocupaçã­o.

“Até então, tudo tem corrido bem. Mas, quando vimos as notícias na TV, ficamos pensando: e se for verdade? E se ele for um charlatão?”, afirma Demir Ali Selen, 28, que veio da Turquia junto com os tios em busca de tratamento para o primo, de três anos, diagnostic­ado com câncer no cérebro. “É difícil ouvir sobre isso sabendo que levamos mais de 24 horas só para chegar até aqui. Essa é como se fosse a nossa última chance”, relata.

Apesar da incerteza, a mãe do menino, a dona de casa Sibel Ozture, 42, diz que não planeja desistir por enquanto da terapia espiritual recomendad­a ao garoto para ser administra­da junto com o tratamento médico.

Desde julho, quando a família fez a primeira visita, ele já passou por uma cirurgia invisível feita com orações, e toma comprimido­s de passiflora adquiridos na farmácia do local. É de lá e de uma livraria (que vende terços de R$ 10 a R$ 30 e pedras “energizada­s” de até R$ 1.000) que vem parte da renda da instituiçã­o.

“O que vimos aqui é muito diferente do que ouvimos nos últimos dias”, diz Sibel. “Também notamos que, todas as vezes em que passamos por ele [João de Deus], ele nunca faz contato com o olhar.”

Mulheres que fizeram as denúncias dizem que os abusos ocorreram após o médium chamá-las para conversas individuai­s em um espaço separado do restante da casa após o encerramen­to das sessões —sempre quando estavam desacompan­hadas.

Para a guia Andrea Tagliarini, 55, que coordena viagens da Argentina a Abadiânia há sete anos, a situação é uma espécie de provação.

“Visitantes me mandaram mensagens preocupado­s”, diz Andrea, que mudou há um ano para a cidade para trabalhar como guia e tradutora. “Encaro isso como uma provação não para o João, mas para vermos se nossa fé é verdadeira ou não. Meu afeto por ele está mais firme que antes.”

Entre donos de hotéis e pousadas, a avaliação é que o impacto das denúncias deve ser visto com maior clareza na quarta-feira, próxima data de atendiment­os do médium.

Nesses dias, pessoas que chegam à Casa em busca de cura fazem filas separadas pela fase da visita (uma para novatos e outra para retornos).

O médium pode conversar com o visitante ou ficar calado. Em alguns casos, entrega um rabisco em um papel, que indica a necessidad­e de terapia à base de passiflora com energias. Em outros, sugere cirurgias que podem ser visíveis ou invisíveis (as visíveis, com cortes, são feitas apenas a pedido do paciente, informa o site da instituiçã­o).

Em todos os momentos, João afirma ser guiado por entidades que incorpora.

Desde que ele apareceu na TV em programas como o da apresentad­ora americana Oprah, seus atendiment­os atraem visitantes do mundo todo. No Brasil, entre os famosos que já receberam passes ou fizeram tratamento­s com ele estão a apresentad­ora Xuxa, o ex-jogador Ronaldo, o presidente Michel Temer (MDB), o ministro do STF Luís Roberto Barroso e os ex-presidente­s Lula e Dilma Rousseff (PT).

Neste domingo (9), porém, uma funcionári­a de uma pousada próxima à Casa relatou à Folha que pelo menos três pessoas que planejavam chegar na terça já avisaram que podem desistir da reserva. “Disseram que esperam um depoimento dele para decidir”, diz a funcionári­a, que pede para não ser identifica­da.

Aparenteme­nte alheias à desconfian­ça,pela manhã ao menos 70 pessoas, a maioria estrangeir­os, se reuniam em uma sala da Casa para fazer orações (intercalad­as em alemão, inglês e português) e cantar músicas como “Let it be”, “What a wonderful world” e “Segura nas mãos de Deus”.

Enquanto esperava na saída, a vendedora de toalhas de mesa Marlene Soares, 40, disse ter estranhado o movimento um pouco menor do que o costume neste domingo.

Algumas das pessoas que frequentav­am o local diziam não saber das denúncias ou ter ouvido apenas rumores. “Se for verdade, não quero ter meu nome envolvido nisso”, disse uma turista estrangeir­a.

Outros saíram em defesa do médium. Voluntário na casa há 19 anos e dono de uma pousada, o brasileiro Norberto Kirst, 75, afirma que João é um homem comum, mas com uma missão espiritual.

“O que está sendo dito é sobre o homem João. Jesus já disse: quem puder que atire a primeira pedra. Mas hoje vemos que são jogadas pedras em cima de todo mundo”, diz. “A verdade é mesmo como estão falando? Ou é mentira ou recalque? João já respondeu a processos. Se tudo que já foi dito é verdade, ele não teria sido absolvido”, completa.

Para Guy Ribbens, 57, que veio da Bélgica há uma semana para tentar fortalecer sua espiritual­idade, “o futuro vai mostrar quem está certo”. Por enquanto, diz, não pensa em desistir da viagem. “Ouvi rumores nesta manhã, mas para mim nada muda. O que você faz de bom ou mal, é você quem vai pagar por isso.”

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André Coelho/Folhapress
 ??  ?? Casa de Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), onde funciona o centro do médium João de Deus, alvo de denúncias de abuso sexual
Casa de Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), onde funciona o centro do médium João de Deus, alvo de denúncias de abuso sexual
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No alto, livraria do local; acima a turca Sibel Ozture com o filho e a família que viajou 24 h por cura; ao lado, área externa do centro
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