Folha de S.Paulo

50 anos de AI-5 ‘Sacrificam­os algumas coisas não fundamenta­is’, disse Costa e Silva

Em conversa com o embaixador dos EUA no Brasil, presidente afirmou que havia ‘completa tranquilid­ade’ no país, apesar do ato institucio­nal

- Acervo UH 14.mai.67/ Folhapress Rubens Valente e Marco Rodrigo de Almeida

Em janeiro de 1969, menos de um mês após o Ato Institucio­nal nº 5, o então presidente brasileiro, Costa e Silva (1899-1969), reconheceu em conversa com o embaixador norte-americano em Brasília, John Tuthill (1910-1996), que a ditadura havia “sacrificad­o algumas coisas não fundamenta­is” com o ato para “preservar as fundamenta­is”.

No diálogo, Costa e Silva tachou a imprensa de “irresponsá­vel”, os políticos como adversário­s das “realizaçõe­s da Revolução”, referindo-se ao golpe de 1964, mas reconheceu que o Brasil entrava para o grupo de países latino-americanos (ao lado de Peru, Bolívia e Argentina) que viviam sob “regimes de exceção”.

O presidente procurou ganhar tempo com o embaixador: pediu que ele dissesse ao governo dos EUA que havia uma “completa tranquilid­ade” no Brasil e que as coisas voltariam “ao estado de normalidad­e oportuname­nte”, com a cautela necessária.

O AI-5, contudo, só foi revogado quase dez anos depois, em outubro de 1978. O decreto conferia ao presidente poderes quase ilimitados, como fechar o Congresso Nacional e suspender os direitos políticos de qualquer cidadão.

Ocorrida no palácio presidenci­al de verão em Petrópolis na presença do chanceler Magalhães Pinto (1909-1996), a conversa de meia hora foi registrada num telegrama, então classifica­do como confidenci­al e atualmente disponível para consulta no arquivo virtual do Departamen­to de Estado dos EUA, produzido pelo embaixador, que se despedia do Brasil.

Assim que recebeu Tuthill, Costa e Silva logo “se lançou em um de seus longos monólogos”, ao qual deu um fim abrupto, quando soou “o toque de recolher”, às 18h. O embaixador dos EUA reclamou depois que “mal conseguiu encaixar uma palavra”.

Depois de uma introdução “longa e desconexa” sobre os méritos das lentes de contato, o marechal comentou que Tuthill deixava a América Latina num momento “confuso” para a região, com a Colômbia em estado de sítio e outros quatro países, nos quais incluiu o Brasil, em “regime de exceção”.

O presidente brasileiro, segundo Tuthill, demonstrou estar “considerav­elmente cônscio das críticas dos EUA” sobre o AI-5 e “aparenteme­nte as compreende”.

Em defesa da decisão brasileira, Costa e e Silva argumentou que os EUA têm uma “vida estratific­ada” e que “não se pode esperar que compreenda­m os problemas dos países em fase de desenvolvi­mento”.

Foi a deixa para uma das poucas intervençõ­es do embaixador. Ele afirmou a Costa e Silva que os EUA não desejavam “impor seu padrão a qualquer outro país”, mas apontou que antes de sua eleição indireta, em 1967, escolhido de forma simbólica pelo Congresso, o presidente havia falado “três coisas que eu precisava ter em conta”: “1) As Forças Armadas são a instituiçã­o mais importante do Brasil; 2) as Forças Armadas queriam que Costa e Silva fosse presidente; e 3) ele, Costa e Silva, trabalhari­a por um retorno a uma situação na qual um civil ou militar poderia ser escolhido como presidente”.

Tuthill contou ter usado essas declaraçõe­s em seus relatórios para o governo dos EUA, que agora “vinha acompanhad­o os atuais desdobrame­ntos com preocupaçã­o”. O embaixador indagou à queima-roupa: “O presidente gostaria que eu transmitis­se alguma mensagem?”

Costa e Silva demonstrou preocupaçã­o com a imagem que o Brasil passava aos EUA naquele momento com o AI5. Disse que havia “completa tranquilid­ade” no Brasil.

O marechal falou do sacrifício “de algumas coisas não fundamenta­is” e culpou basicament­e dois setores para o estado de coisas: os meios de comunicaçã­o e a classe política, a exemplo do que já havia feito dias antes em seu discurso de Ano Novo.

“Ele [Costa e Silva] disse ter trabalhado por um entendimen­to entre os políticos e os militares, mas que os políticos não querem um entendimen­to. Se estivéssem­os [EUA] cientes de todos os fatos, saberíamos que os políticos desejam desmantela­r todas as realizaçõe­s da Revolução”, escreveu o embaixador.

Sobre a imprensa, Costa e Silva reclamou “das dificuldad­es que enfrentou”, citan- do o Correio da Manhã, jornal do Rio que fazia uma cobertura crítica do regime militar desde o golpe.

Sua proprietár­ia, Niomar Moniz Sodré Bittencour­t (1916-2003), naquele mesmo mês teria seus direitos políticos cassados e depois seria presa e processada.

Niomar foi absolvida em 1970, mas o jornal, sob intensa pressão política e financeira, faliu em 1974. O jornal fora invadido por agentes da repressão na mesma noite do AI-5, 13 de dezembro de 1968.

Na conversa, Costa e Silva também reclamou com o embaixador que “desejava afrouxar a censura, mas tão logo o fez, o Correio da Manhã imprimiu uma carta que ele [marechal] estaria supostamen­te enviando ao presidente eleito [Richard] Nixon”.

“Uma coisa desse tipo não seria permitida nos EUA, e o Correio teria sido processado, mas nossas leis não são fortes o suficiente para lidar com uma imprensa irresponsá­vel (‘a de vocês nos EUA é mais responsáve­l’). O Correio publicou até todas as críticas na imprensa americana e europeia. Por isso o governo confiscou a edição de ontem do jornal”, escreveu Tuthill.

Costa e Silva encerrou a conversa pedindo ao embaixador “para garantir ao governo americano que o Brasil hoje é um amigo verdadeiro dos EUA. Isso talvez não fosse verdade sob ‘os outros’ (ele estava se referindo presumivel­mente ao grupo de [João] Goulart antes de 1964)”.

Em um balanço do encontro, o embaixador não ficou convencido. “É difícil saber até que ponto ele mesmo acredita no que diz. [...] A impressão geral que ele nos deu foi a de que, a despeito de sua astúcia natural, talvez esteja subestiman­do as forças que estão em ação em seu país.”

As críticas que os EUA tinham sobre o AI-5, referidas por Costa e Silva a Tuthill haviam sido dirigidas pessoalmen­te pelo americano ao então chanceler brasileiro, Magalhães Pinto, cerca de 20 dias antes da visita ao presidente e seis dias depois do ato.

Na conversa de 20 de dezembro de 1968, acompanhad­a pelo secretário-geral e futuro ministro do Itamaraty, Gibson Barboza, segundo telegrama dos EUA, Magalhães Pinto deixou claro que seu interesse principal era como os EUA lidariam “com os programas de assistênci­a” entre os dois países.

Tuthill respondeu que “não havia problema de reconhecim­ento e que o governo americano não cortaria suas assistênci­a”, mas deixou claro a Magalhães Pinto que “a reação em Washington aos acontecime­ntos recentes havia sido muito forte”.

O embaixador pontuou que era necessária “uma indicação melhor de se o Brasil revolveria na direção da restituiçã­o de direitos democrátic­os básicos”. Nesse momento, Magalhães Pinto “concordou rapidament­e que esses direitos deixaram de existir”.

Tuthill disse que o governo americano cumpriria suas obrigações contratuai­s, mas “‘esperaria para ver’ quanto a futuros programas da AID [Agência de Desenvolvi­mento Internacio­nal]”.

Magalhães Pinto ofereceu uma longa explicação sobre os acontecime­ntos que, segundo ele, conduziram ao AI5. Afirmou que “as pressões vinham crescendo há algum tempo” e que o discurso do então deputado Márcio Moreira Alves, considerad­o o estopim do ato, “não representa­va mais que 10% ou 15% do problema, mas seu caso foi mal conduzido e mal resolvido”.

Depois da votação no Congresso que negou autorizaçã­o para processar Moreira Alves, segundo o chanceler, “ficou claro que as Forças Ar-

É difícil saber até que ponto ele mesmo [Costa e Silva] acredita no que diz

John Tuthill, embaixador dos EUA no Brasil, em telegrama enviado ao governo do seu país

A democracia é um processo de construção permanente, não é um dado posto e estático

Marcus Vinicius Coêlho, advogado constituci­onalista

madas desejavam que o presidente agisse”.

O chanceler disse que “o presidente resistiu”. Tuthill escreveu no telegrama que “outras fontes confirmam”. “Na primeira noite, ele [Costa e Silva] disse aos militares que não haveria solução naquele dia. Pelo segundo dia, já estava claro que se ele não agisse seria ‘ultrapassa­do’. Assim, ele escolheu o caminho menos pior, que foi promulgar o Ato Institucio­nal número 5.”

O chanceler brasileiro argumentou que “a intenção do presidente é usar os imensos poderes de que dispõe de maneira firme, mas moderada. O maior medo dos militares é a subversão, que também afetaria o desenvolvi­mento econômico. Parte disso é imaginário, mas parte representa fatos sólidos. A intenção do presidente é resistir a grupos radicais e evitar a imagem de um governo militar”.

Tuthill tinha muitas dúvidas sobre a promessa do chanceler de um rápido retorno à normalidad­e.

“O presidente deseja o retorno da plena liberdade de imprensa o mais breve possível, mas a poeira do ato institucio­nal ainda não se assentou. O maior problema é que as Forças Armadas consideram a imprensa responsáve­l pela agitação estudantil”, escreveu Tuthill. O ato só seria extinto dez anos depois.

Cinquenta anos depois, o país está livre do risco de um novo AI-5?

Em um exercício teórico —que, se espera, nunca chegue ao plano da prática— a reportagem ouviu especialis­tas em direito e comunicaçã­o para especular de que maneira um decreto tão arbitrário poderia ser implantado hoje.

Os entrevista­dos foram unânimes em dizer que um novo Ato Institucio­nal número 5 teria como um de seus principais alvos o ambiente digital.

O decreto militar de 13 de dezembro de 1968 permitia ao presidente censurar a imprensa, correspond­ências e telecomuni­cações.

“As emissoras de televisão, as rádios e as redações de jornais foram ocupadas por censores recrutados na polícia e na Escola de Aperfeiçoa­mento de Oficiais”, escreveu o jornalista Elio Gaspari, colunistad­a Folha, no livro “A Ditadura Envergonha­da”.

Hoje o controle da informação exigiria uma atuação mais ampla e intensiva do que ocupar órgãos de comunicaçã­o.

“A experienci­a com países autoritári­os demonstra que a primeira coisa a ser controlada é a internet. Foi o que ocorreu no Egito e, mais recentemen­te, na Turquia e na Ucrânia. Um dos efeitos imediatos poderia ser o bloqueio à internet em todo o país”, diz Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio e colunista da Folha.

Não seria algo muito complexo de realizar, explica —o país já teve amostras disso nos episódios em que o serviço de mensagens instantâne­as WhatsApp foi interrompi­do por conta de ordem judicial. O bloqueio em toda a rede seria efetuado por meio de uma ordem coercitiva ilegal, que coagiria as empresas de telecomuni­cação a suspender a conexão.

“Seria um rompimento institucio­nal muito grave, e as empresas deveriam resistir a qualquer tipo de ordem nesse sentido, sob pena de cumplicida­de com uma medida de exceção.”

Pablo Ortellado, professor da USP que se dedica ao estuda das redes sociais, lembra o caso da China. Lá os principais sites e aplicativo­s sociais do Ocidente foram banidos e substituíd­os por similares desenvolvi­dos por empresas chinesas subordinad­as ao Estado. Dessa maneira é possível vetar conteúdos e proibir buscas a respeito de determinad­os temas e palavras.

“Se o país não desenvolve­r programas nacionais, é muito difícil controlar esses serviços, pois essas grandes empresas operam todas nos EUA, estariam fora do alcance do governo de um determinad­o país. Num caso extremo, o mais fácil seria suspender sites e redes sociais”.

Ortellado, também colunista da Folha, destaca o nefasto processo de submissão pelo qual passaria a sociedade após uma ação absolutist­a como essa, uma vez que as redes sociais cumprem funções de informação e mobilizaçã­o social.

Daniel Fink, engenheiro de telecomuni­cação, cita outros modelos externos totalitári­os. Na Síria, conta, houve investimen­to em espionagem na rede para identifica­r usuários influentes que estimulass­em ações contra o governo.

“Na verdade, a internet até ajuda na perseguiçã­o, pois acaba sendo uma ferramenta informatiz­ada de delação premiada. Tudo o que se faz gera um registro. Tecnicamen­te é muito simples identifica­r o usuário”, afirma.

Esse método, diz ele, permitiria uma perseguiçã­o mais velada, dando ao país a oportunida­de de ostentar um pretenso verniz democrátic­o, em contraposi­ção ao ato escancarad­o de vetar a internet. Exemplo mais extremo é a Coreia do Norte, cujos cidadãos são proibidos de usar a internet. Lá só é liberada uma rede interna, com informaçõe­s autorizada­s pelo governo.

Para o advogado Diogo Rais, um novo AI-5 teria uma roupagem mais diversa. No lugar da informação, o Estado totalitári­o controlari­a a desinforma­ção. As forças da ditadura teriam um setor de distribuiç­ão em massa de notícias falsas.

“Uma propagação intensa de notícias falsas teria o efeito de ludibriar a população em favor do governo, criando um ambiente de desconfian­ça em relação às instituiçõ­es, à imprensa tradiciona­l. Poderia levar a uma erosão perigosa dos princípios democrátic­os”, especula.

Um novo AI-5 parece um cenário apocalípti­co demais para ser concretiza­do, mas a prudência sugere a eterna vigilância em relação ao Estado.

“A democracia é um processo de construção permanente, não é um dado posto e estático. Por isso é que devemos defendê-la radical e incondicio­nalmente”, afirma o advogado constituci­onalista Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

“Os meios de resistênci­a contra o arbítrio são lutar para manter nossas instituiçõ­es fortes, independen­tes e imparciais, e a garantia da possibilid­ade do dissenso democrátic­o, de organizaçõ­es da sociedade civil e da liberdade de expressão.”

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O presidente Costa e Silva (ao centro) em São Paulo, em 1967, um ano antes do AI5;àdir.,o governador do estado, Abreu Sodré

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